domingo, 25 de agosto de 2002

A elusiva matéria escura


Marcelo Gleiser
especial para a Folha

A ciência nem sempre avança a passos certos. Muito pelo contrário, o processo de desenvolvimento das teorias científicas é marcado por pistas falsas, divergências de opinião e vários recomeços após tentativas fracassadas. Essa luta toda não é uma fraqueza da ciência, mas consequência de nossas próprias limitações ao lidar com os desafios impostos pela natureza. É sempre bom lembrar que sem dúvida o conhecimento não avança.

Dos vários desafios atuais, um dos mais fascinantes é o da matéria escura. Ao contrário da matéria luminosa, como a que vemos em estrelas e certas nuvens de gás, ela não produz a sua própria luz. Sua existência foi proposta para explicar um aparente problema com a velocidade de rotação das estrelas em galáxias.

Galáxias são aglomerados de estrelas e gás, principalmente hidrogênio e hélio. Como tudo no Universo, de planetas a estrelas, as galáxias também giram. A sua velocidade de rotação é medida através da observação da rotação das estrelas em torno do centro da galáxia.

No século 17, o físico inglês Isaac Newton propôs as três leis de movimento e a lei da atração gravitacional, que juntas ditam como as estrelas devem girar em torno do centro das galáxias. De acordo com a segunda lei de movimento de Newton, a aceleração de um objeto é proporcional à força aplicada sobre ele dividida pela sua massa. Quando essa lei, junto com a lei da atração gravitacional, é aplicada ao movimento das estrelas em galáxias, a previsão é que a velocidade de rotação das estrelas atinja um valor máximo a uma certa distância do centro e comece a cair a partir daí.

Surpreendentemente, não é o que se observa. Na maioria das galáxias, a velocidade de rotação chega a um valor máximo mas, em vez de cair a partir dali, ela fica aproximadamente constante. As observações discordam da teoria de Newton, a mais aceita da física clássica.

Das duas, uma: ou a teoria de Newton tem de ser modificada para grandes distâncias, ou existe mais matéria do que a luminosa que vemos nas galáxias. Essa última hipótese leva à matéria escura, um tipo de matéria cuja presença só pode ser detectada por sua atração gravitacional sobre outras formas de matéria luminosa, como as estrelas nas galáxias.

As primeiras idéias sobre matéria escura datam da década de 1930, quando o astrônomo Fritz Zwicky mostrou que as velocidades de galáxias em aglomerados de galáxias (sistemas onde várias galáxias giram uma em torno da outra, atraídas pela gravidade) são muito maiores do que o que se pode inferir devido à existência apenas da matéria luminosa.

Hoje, a maioria dos astrônomos e físicos acredita que essa matéria escura seja muito mais abundante do que a matéria de que nós somos feitos. Para os proponentes dessa hipótese, cerca de um terço do Universo é composto de matéria escura, enquanto apenas 5% é composto de matéria luminosa. O problema com esse cenário é que, até hoje, ninguém conseguiu detectar essa matéria escura, apesar dos esforços. Essa dificuldade tem levado alguns físicos a optar pela primeira solução, modificar a teoria de Newton.

A proposta que vem sendo levada mais a sério é a de Mordehai Milgrom, físico israelense do Instituto de Pesquisas Weizmann. Segundo Milgrom, quando as acelerações são muito pequenas, como é o caso das estrelas em galáxias, ou de galáxias em aglomerados de galáxias, a segunda lei de Newton é modificada de forma que a força seja proporcional ao quadrado da aceleração.

Nesse esquema, chamado Mond (sigla em inglês de "dinâmica newtoniana modificada"), uma mesma aceleração pode ser obtida com uma força menor, ou seja, com uma gravidade mais fraca. A modificação de Milgrom se encaixa muito bem nas observações, fazendo até certas previsões que foram confirmadas. Mas ela é apenas uma teoria fenomenológica, desenhada para funcionar.

Resta ver se existe algum princípio mais fundamental que determina essa modificação, ou se o Universo é repleto de matéria exótica. Nesse meio tempo, a crise inspira a criatividade dos físicos.

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