domingo, 1 de setembro de 2002

Economia cósmica


Marcelo Gleiser
especial para a Folha

Em sua essência, a ciência busca organizar a nossa percepção dos fenômenos naturais. Por meio dessa busca, encontramos os mecanismos operacionais da natureza, chamados de leis. Elas descrevem, de modo econômico e preciso, como as coisas ocorrem no cosmo, do interior do núcleo atômico aos confins do Universo. Portanto, pode-se dizer que a essência da ciência tem sido a busca dessas leis naturais, o código cósmico.

Quatrocentos anos de ciência revelaram algumas dessas leis. Talvez a mais famosa seja a lei da conservação de energia, que afirma que a quantidade de energia antes e depois de algum evento é a mesma. Ela pode se transformar no decorrer do evento, mas jamais desaparece. Por exemplo, um carro usa a energia química armazenada na gasolina para impulsionar o seu motor que, por sua vez, faz girar as suas rodas. Existe uma perda de energia devido à fricção interna ao motor e nas rodas, mas a quantidade total de energia, incluindo a perda devido à fricção, deve ser a mesma. Essa lei, assim como todas as outras, é testada e confirmada quantitativamente todos os dias.

Talvez a questão mais básica em ciência seja: "Por que essa leis e não outras?" Como foi decidido que o Universo devia operar desse jeito e não de outro? Claro, uma resposta bem mais antiga do que a ciência é que Deus (ou os deuses, dependendo da crença de cada um) criou o Universo e as leis que regem o comportamento das coisas. Essa resposta, por mais popular que seja, não é muito interessante do ponto de vista científico, já que a missão da ciência é proporcionar explicações racionais do funcionamento do cosmo sem o uso de argumentos sobrenaturais. Idealmente, gostaríamos de responder a essa pergunta usando a própria ciência.

Esse problema se torna mais complexo ainda quando tentamos respondê-lo junto com uma outra questão complicada, a da origem do Universo. Segundo santo Agostinho, Deus criou o tempo junto com o cosmo. Portanto, a pergunta "O que estava acontecendo antes de o mundo existir?" não faz sentido, já que o tempo não existia antes do mundo. A relação com a origem das leis da natureza é imediata: mesmo se conseguirmos desenvolver um modelo matemático que explique a origem do Universo, esse modelo será necessariamente baseado nas leis da física. Ou seja, a pergunta "Como o mundo surgiu?" na verdade deveria ser "Como surgiram as leis da física?". As leis vêm antes dos modelos.

Mas, se as leis vêm antes dos modelos, o que vem antes das leis? Racionalmente, só existe uma resposta: os princípios. Pegue um dicionário e procure pela definição de "princípio". A primeira é: "Fonte primária, origem, ou causa de algo"; a segunda: "Uma tendência natural ou original"; a terceira: "Uma verdade fundamental ou força motivadora, donde outras se baseiam" (fonte: "Webster's New World Dictionary", 3rd College Edition). Ou seja, por trás das leis deve haver algum princípio fundamental, que é capaz de originá-las. A questão é, portanto, que princípio é esse.

Para responder a essa questão, temos de examinar a história cósmica. Segundo a cosmologia moderna, o cosmo começou simples, com a matéria desorganizada, constituída apenas de seus componentes básicos, as partículas elementares. Com o passar do tempo, a matéria passou a se organizar de forma cada vez mais complexa: os quarks formaram prótons e nêutrons, os prótons e nêutrons formaram núcleos atômicos, os elétrons se juntaram aos prótons para formar átomos.
Esses átomos, sob a ação da gravidade, formaram estrelas, que formaram outros elementos químicos e moléculas mais complexas. E essas moléculas, ao menos aqui na Terra, formaram seres vivos mais elementares e, eventualmente, seres humanos, capazes de refletir sobre as suas próprias origens. A história cósmica é a história da complexificação gradual das formas materiais. Qual o seu princípio operativo? A economia. A natureza sempre opta pelo caminho menos custoso. A agregação da matéria responde a esse princípio. As próprias leis naturais, acho eu, são consequência desse princípio. E de onde vem esse princípio? De si próprio. Sem ele, seria impossível decidir qual a forma material mais econômica e eficiente. E o caos reinaria eternamente.

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