domingo, 29 de setembro de 2002

As âncoras cósmicas


Marcelo Gleiser
especial para a Folha

Existe uma belíssima hierarquia no Universo, de padrões que se repetem a distâncias variando de um planeta e sua lua até aglomerados contendo milhares de galáxias. São objetos girando em torno de outros, os de menor massa em torno dos de maior, em uma coreografia controlada pela gravidade: a Lua gira em torno da Terra, assim como outras luas em torno de outros planetas. Os planetas giram em torno do Sol, e o Sol em torno do centro da Via Láctea, juntamente com bilhões de outras estrelas. E a Via Láctea gira em torno de aproximadamente 20 outras galáxias, pertencentes ao "grupo local".

Mais precisamente, objetos giram em torno do chamado centro de massa do sistema. Por exemplo, se você sentar com uma pessoa do seu mesmo peso em uma gangorra, o centro de massa será exatamente no meio da gangorra. Se a pessoa for bem mais pesada, o centro de massa será mais próximo dela. No caso do Sistema Solar, como o Sol é bem mais maciço do que todos os planetas, o centro de massa está próximo do seu centro, mas não exatamente nele. O centro de massa é a âncora gravitacional do sistema, o ponto em torno do qual tudo gira.
Se o Sol, a âncora gravitacional do sistema solar, gira em torno do centro da galáxia, então o centro de massa da galáxia, a sua âncora, deve estar bem próximo de seu centro. Até pouco tempo atrás, não se sabia o que se escondia por lá: telescópios terrestres não eram capazes de enxergar através da confusão de estrelas e gás incandescente que existem na região central da Via Láctea ou de qualquer outra galáxia. A solução foi utilizar uma combinação de telescópios que vêem não a luz visível, mas outros tipos de radiação eletromagnética, as ondas de rádio e a radiação infravermelha.

Após anos de estudos detalhados, astrônomos descobriram algo de surpreendente: no coração da Via Láctea reside um gigantesco buraco negro, com uma massa equivalente à de milhões de sóis. Essa conclusão baseia-se em vários argumentos: primeiro, nuvens de gás girando em torno do centro galáctico têm uma forma toroidal (como uma rosca), emitindo quantidades enormes de radiação. Segundo, bilhões de estrelas também giram em torno dessa região, a altíssimas velocidades.Terceiro, a região central, a âncora gravitacional dessa atividade toda, é extremamente pequena. Apenas buracos negros podem causar tanto alvoroço em tão pouco espaço.

Essa descoberta não se limita à Via Láctea: todas as outras galáxias, desde as de forma espiral (o caso desta galáxia) até as elípticas, contêm um buraco negro em seu centro. O interessante é que, em todas as galáxias estudadas até agora, o buraco negro central tem em torno de 0,5% (1/ 200) da massa total da galáxia. Resultados como esse não são uma coincidência: eles expressam algo de universal na formação e no crescimento das galáxias, uma relação entre a âncora gravitacional e a sua corte de estrelas e gás.

Aqui reaparece a hierarquia dos padrões cósmicos: o Sistema Solar nasceu devido ao colapso de uma gigantesca nuvem de gás, rica em hidrogênio, há aproximadamente 5 bilhões de anos. A própria gravidade da nuvem, aliada à sua rotação, fez com que ela assumisse a forma de uma pizza durante o seu colapso, com a maioria da massa concentrada em seu centro. Essa massa central gerou o Sol, enquanto que aglomerados menores girando à sua volta produziram os planetas. (Esse processo é explicado em meu livro "O Fim da Terra e do Céu".) Ao menos aproximadamente, a nossa galáxia repetiu esse mesmo processo de formação, 7 bilhões de anos antes do Sol. Mas a concentração de massa em seu centro era tão gigantesca que ela não pôde suportar o próprio peso e entrou em colapso, terminado com um buraco negro.

Recentemente, um outro ramo dessa hierarquia cósmica foi descoberto. Aglomerados globulares contêm milhões de estrelas, entre elas as mais velhas do Universo, com 12 bilhões de anos. O Telescópio Espacial Hubble detectou buracos negros no centro de dois aglomerados, cada um contendo também 0,5% da massa de seu aglomerado, a mesma proporção das galáxias. Resta desvendar a função das âncoras cósmicas no processo de formação de galáxias, sejam elas pequenas ou grandes.


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