domingo, 6 de outubro de 2002

Gravitação e quanta, um casamento complicado


Marcelo Gleiser
especial para a Folha

Durante as três primeiras décadas do século 20, a física e, consequentemente, a visão de mundo moderna passaram por uma profunda revisão. Duas novas teorias, a teoria da relatividade e a teoria quântica, reformularam a concepção da estrutura do espaço e do tempo, assim como a do mundo dos átomos e das partículas subatômicas. Enquanto a teoria da relatividade geral, elaborada por Albert Einstein, mostrou que a atração gravitacional entre dois (ou mais) corpos pode ser interpretada como devida à curvatura do espaço em torno dos corpos, a teoria quântica mostrou que, no mundo dos átomos, processos físicos como a troca de energia entre átomos e radiação ocorrem descontinuamente.

Ambas as teorias causaram uma ruptura com a chamada visão de mundo clássica, segundo a qual a atração gravitacional era interpretada como uma força agindo à distância entre corpos maciços, e os processos do mundo atômico não eram particularmente distintos dos processos ocorrendo à nossa volta. A física passou a revelar um mundo onde a intuição simplesmente não funciona.

Com o desenvolvimento da tecnologia dedicada ao estudo dos átomos e das partículas subatômicas, como o elétron e o próton, ficou claro que a física do mundo submicroscópico é regida por três forças fundamentais: o eletromagnetismo, que trata da atração e da repulsão das cargas elétricas e da sua relação íntima com o magnetismo, e as forças nucleares forte e fraca que, como já diz o nome, atuam apenas dentro do núcleo atômico, ou seja, a distâncias menores do que um trilionésimo de centímetro. Claramente, nós não temos nenhuma percepção direta das duas forças nucleares. Das quatro forças fundamentais, nós temos familiaridade apenas com as duas de longo alcance, a gravidade e o eletromagnetismo.

Uma das características mais fundamentais da teoria quântica é que quantidades físicas como a energia ou o momento de uma partícula (que depende de sua velocidade) flutuam. Não é possível afirmar com absoluta precisão que "a energia desse elétron é tal e o seu momento é tal", como seria possível em física clássica. (Excluindo-se os inevitáveis erros que ocorrem sempre que fazemos alguma medida. Por exemplo, ao medirmos uma distância com uma régua, não temos precisão maior do que a metade da menor subdivisão da régua.)

Portanto, no mundo do muito pequeno nada pára, tudo está sempre em movimento, numa constante agitação quântica. Por exemplo, imagine que um elétron seja uma bola bem pequenina e que ele tenha sido posto em uma cuia côncava. Dentro da visão clássica, o elétron iria eventualmente parar no fundo da cuia, com energia zero. Segundo a física quântica, o elétron irá se aproximar do fundo da cuia e, em média, sua posição será a mesma da física clássica, mas ele continuará a flutuar permanentemente em torno do fundo da cuia.

A física quântica, mesmo que bem exótica, é extremamente bem-sucedida: muito de nossa tecnologia moderna, incluindo lasers, medicina nuclear e todos os produtos da tecnologia digital, são consequência dessas flutuações de elétrons e outras partículas. Esse sucesso e a descoberta das duas forças nucleares acabaram por criar um desequilíbrio na física: existem quatro forças, três delas atuando no mundo subatômico, e uma delas, a gravitacional, sendo praticamente desprezível no mundo do muito pequeno, mas absolutamente fundamental nas escalas macroscópicas, de bactérias e planetas até galáxias e o Universo.

Esse desequilíbrio cria um verdadeiro dilema: segundo a cosmologia moderna, o Universo está em expansão. Se voltarmos à sua infância, há 14 bilhões de anos, o próprio Universo era muito pequeno, de dimensões comparáveis às partículas subatômicas. Nesse caso, suas propriedades deveriam ser descritas pelas regras da teoria quântica. O problema é que a gravidade, segundo a descrição da relatividade geral, não se adapta facilmente à essas regras. O casamento entre as duas teorias é um dos grandes desafios da física moderna. E ainda não foi consumado.

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