domingo, 14 de abril de 2002

Catedrais e linhas de montagem

Marcelo Gleiser
especial para a Folha

Os gregos da Antiguidade já se encontravam divididos com relação às duas faces da ciência, a pura e a aplicada. Platão, por exemplo, desprezava os artesãos frente aos geômetras, dizendo que os primeiros faziam as coisas sem entender o seu funcionamento, apenas repetindo técnicas ensinadas pelos seus mestres, também artesãos.

Ele ia além, dizendo que o que enaltece o homem é o uso da razão, especialmente quando essa é aplicada ao mundo das idéias puras, sem preocupações com aplicações mundanas. Aristóteles costumava soar a mesma trombeta, dizendo que o estudo das coisas aplicadas era menos importante do que aquele das coisas mais nobres, como o arranjo do mundo e o seu funcionamento.

Até mesmo Arquimedes, que além de ser um dos maiores matemáticos da Antiguidade era também um grande inventor, desprezava o trabalho técnico daqueles que não tinham preocupações mais profundas sobre a estrutura do cosmo. Imagino que ele via o seu trabalho mais aplicado, cujas catapultas e sistemas de polias foram críticas na defesa da cidade de Siracusa, na Itália, como um mal necessário.

Essas duas visões da ciência são as vezes comparadas com catedrais e linhas de montagem. Dentro dessa analogia, catedrais são vistas como obras que não têm um propósito prático imediato, servindo apenas como veículo de transcendência espiritual, enquanto as linhas de montagem se prestam apenas à construção de objetos e artigos cujo uso, em geral, não cria conhecimento. Ou seja, conhecimento vem exclusivamente da ciência pura, enquanto a ciência aplicada apenas gera novas tecnologias.

A meu ver, tanto a divisão polarizada da ciência entre "pura" e "aplicada", quanto a comparação dessas suas duas características a catedrais e linhas de montagem são absurdas. Primeiro, catedrais tinham um uso prático (entre outros) que era estimular o turismo da região. Uma catedral atraía peregrinos e visitantes de várias partes da Europa, enriquecendo a economia local, incluindo, claro, a igreja. Mas, nessa analogia, a imagem da catedral é usada em seu sentido abstrato, de que a ciência pura não tem como objetivo a construção de objetos ou invenções de caráter prático, sendo dedicada apenas ao estudo do funcionamento da natureza em seu nível mais profundo. Já a ciência aplicada não se interessa por questões mais profundas, dedicando-se apenas a aplicações de conceitos científicos na construção de novas tecnologias. Na prática, o funcionamento da ciência e seu relacionamento com a tecnologia é muito mais complexo e não se presta a simples polarizações. Talvez os cientistas sejam mais puros ou aplicados do que a ciência. Existem casos extremos, como físicos interessados na construção de uma teoria quântica da gravidade, ou aqueles estudando as propriedades mecânicas de ligas materiais, onde fica mesmo difícil imaginar (ao menos no momento) aplicações práticas vindas dos primeiros ou descobertas conceituais profundas dos segundos. Mesmo assim, a polarização me parece forçada.

É impossível traçar a evolução histórica da ciência focando apenas seus aspectos mais puros ou aqueles mais aplicados. Isso porque, em muitos casos, grandes revoluções conceituais se deram justamente devido ao aparecimento de novas tecnologias. A profunda revolução que ocorreu na Renascença, que provocou a substituição de um cosmo geocêntrico (a Terra no centro) por um cosmo heliocêntrico (o Sol no centro), se deu em grande parte devido à construção de diversos instrumentos de medida astronômicos de grande precisão, principalmente pelo astrônomo Tycho Brahe, e pelo aperfeiçoamento do telescópio, por Galileu. Munido de dados obtidos com esses instrumentos, o alemão Johannes Kepler elaborou em detalhe a teoria heliocêntrica proposta por Copérnico em 1543, indo muito além dela. O avanço na nossa compreensão da física das estrelas e da cosmologia se deu em grande parte devido à invenção da fotografia no século 19. Como último exemplo, a revolução na compreensão do átomo, a mecânica quântica, se deu devido ao desenvolvimento de várias técnicas experimentais que levaram a resultados que não podiam ser explicados pela física clássica do século 19: a revolução conceitual foi forçada pelo laboratório. A ciência nasce do casamento das descobertas conceituais com as invenções práticas, uma alimentando a outra, formando um todo indissolúvel. Mas, como em todo o casamento, sempre haverá épocas de crise.

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