domingo, 2 de setembro de 2001

Inteligência artificial segundo Spielberg

Uma das questões teológicas mais conhecidas é: "Se Deus é perfeito, por que sentiu a necessidade de criar Adão e Eva?" A resposta, ou ao menos uma delas, é que Deus criou o homem e a mulher para que eles pudessem amá-lo. Nesse caso, Deus revela uma vaidade um tanto imperfeita e embaraçosa, que dá pano para várias mangas eclesiásticas. Essa pergunta, sem o último comentário, aparece no início do novo filme de Steven Spielberg, "Inteligência Artificial". O ator William Hurt representa o cientista genial que desenvolve um método para codificar emoções em redes neurais implantadas em robôs que são externamente indistinguíveis de seres humanos. Em outras palavras, o filme trata da possibilidade de criarmos máquinas que, para todos os propósitos, se comportam como seres humanos e se assemelham a eles, nossos próprios Adão e Eva.

Se, por um lado, é difícil entender a motivação divina em criar os homens, no nosso caso a motivação é trivial: nós somos seres vaidosos, com uma profunda necessidade de amar e ser amados. E, ainda mais importante, nós somos mortais, e nossa mortalidade é causa de grande sofrimento. De certa forma, a morte é o triunfo final da Natureza sobre a criatividade humana -a menos que, claro, a ciência possa driblar a morte.

Esse é, essencialmente, o tema do filme de Spielberg. As máquinas que amam e sonham criadas pelo cientista são cópias idênticas de seu filho já falecido. Se não nos é possível perpetuar a vida, podemos ao menos imitá-la. O problema é que o cientista se esqueceu de um detalhe fundamental: as máquinas que amam e sonham são essencialmente imortais, condenadas a sofrer a perda dos entes amados para sempre. Na ânsia de amenizar a dor de sua perda, o cientista egoísta condena a sua criação a sofrer da mesma dor. E sem o alívio que vem com a morte.

O filme nos alerta para vários perigos futuros, todos consequência do uso cego e desenfreado da ciência. Grande parte do mundo, em particular as regiões costeiras, jaz submersa pelo aumento do nível do mar provocado pelo efeito estufa; a recriação de Nova York parcialmente sob as águas é tecnicamente espetacular. A narrativa do filme é estruturada como um conto de fadas, traçando as aventuras de um robô-criança capaz de amar e sonhar, cujo maior desejo é, como Pinóquio, tornar-se um menino de verdade.

Conforme fica claro no filme, se os humanos são capazes de criar máquinas que sentem e amam, não é óbvio que eles serão também capazes de amá-las. As máquinas não são vistas como animais de estimação, mas como uma ameaça à hegemonia dos humanos na Terra: afinal, se máquinas imortais e inteligentes podem existir, qual é a vantagem de preservar a espécie humana? A criação pode vir a dominar o criador, suplantando a necessidade de sua existência, numa repetição do tema já abordado em "Frankenstein", escrito no início do século 19. A crise entre criador e criatura surge quando o "monstro" pede ao seu criador por uma companheira. Apavorado com a possibilidade de criar uma raça de monstros que possa suplantar a raça humana, o dr. Frankenstein nega-se a ajudar sua criatura.

Como o cientista no filme de Spielberg, o pobre doutor esqueceu que a solidão é a maior punição da imortalidade.
Estamos ainda longe de criar máquinas capazes de pensar. O cérebro humano não funciona como um computador comum, com uma central única de processamento de dados. A origem do que chamamos de mente, ou de consciência, permanece ainda um mistério. Mas nossa ignorância atual não é uma garantia para o futuro: possivelmente, o desenvolvimento das ciências cognitivas nas próximas décadas, acoplado ao desenvolvimento da capacidade computacional dos microprocessadores, irá criar uma nova geração de máquinas que se aproximarão cada vez mais dos robôs sensíveis de Spielberg.

Mesmo que o filme deixe várias questões em aberto, ele nos convida a uma reflexão sobre o que significa criarmos cópias imortais de nós mesmos. Talvez seja uma boa idéia criarmos máquinas que envelheçam e morram. Caso contrário, nossas criações irão se tornar divinas, imortais e perfeitas. E seremos nós as entidades supérfluas.

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