segunda-feira, 18 de julho de 2005

O planeta Gleiser

O planeta Gleiser
Astrofísico, escritor, roteirista: uma viagem pelo universo íntimo do único cientista pop do Brasil

ELIANE BRUM

» Confira a íntegra da entrevista com o cientista Marcelo Gleiser

MARCELO GLEISER
Dados pessoaisNasceu no Rio, tem 46 anos, três filhos. Vive nos Estados Unidos há 23 anos

CarreiraProfessor de Física do Dartmouth College, nos EUA, publicou cinco livros, ganhou vários prêmios, entre eles dois Jabutis, o José Reis de Divulgação Científica e o Presidential Faculty Felows, da Casa Branca
Últimas realizaçõesUm romance sobre a vida do cientista Johann Kepler e dois roteiros de cinema
Montagem sobre fotos de Maurilo Clareto/ÉPOCA e reprodução

Fotos: arq. pessoal
O PEQUENO GLEISER
Caçula temporão, depois de dois garotos, os pais, Izaac e Haluza, torciam que fosse uma menina. Na foto, com 1 ano
Se houve um início, o dele foi a morte. Marcelo Gleiser perdeu a mãe, Haluza, aos 6 anos, em ''circunstâncias trágicas''. No escuro desde então, quis se tornar ''o primeiro judeu vampiro da História''. Com 10 anos, pegava um ônibus em Copacabana para se abrigar do sol carioca entre as largas paredes da Biblioteca Nacional. O pequeno Gleiser não conhecia outro atalho para a Transilvânia que não fosse o dos livros. A biblioteca era o castelo do menino. ''Queria entrar num plano em que minha mãe existisse.'' Dentro de uma mala preta, que escondia embaixo da cama, progredia sua primeira investigação científica: pilhas de anotações sobre Drácula e a imortalidade. ''Tinha medo de que meu pai descobrisse e pensasse que eu fosse louco.'' A infância foi para ele uma longa jornada noite adentro.
A aurora só viria bem mais tarde e outras perdas depois. ''Esse começo é a pedra filosofal da minha vida'', diz. ''Sou produto dessa perda. Quando se perde algo tão importante, você passa o resto da vida criando por causa dessa destruição. É como uma compensação. Quando era adolescente, percebi que tinha duas opções: ou me tornava uma pessoa mórbida ou tentava criar a partir da perda. Fui até o fundo do buraco para perceber que a resposta não estava lá. A resposta não estava em descobrir a vida depois da morte, mas a vida que estava acontecendo aqui e agora. Então me entendi.''
O cientista que virou pop está há mais de 1 bilhão de segundos de seu big bang particular. Aos 46 anos, transformar-se em vampiro foi a única façanha que Marcelo Gleiser não conseguiu. É o tipo que parece ter conquistado tudo. Tornar-se um cientista de expressão internacional já seria proeza suficiente para uma vida. Em 1994, Gleiser era exatamente isso. Pesquisador e professor de Física e Astronomia do Dartmouth College, uma das mais prestigiadas universidades americanas, suas descobertas sobre o cosmos foram premiadas pela Casa Branca.
FORMATURA
Aos 11 anos, recebendo o diploma da 5ª série das mãos do pai
Desde a primeira aula de seu curso em Dartmouth, batizado de Física para Poetas, Gleiser conseguiu arrebatar uma multidão de estudantes das áreas mais variadas. O cientista que nunca encontrou consolo na religião compartilhava com seus alunos - como hoje o faz com seus leitores - a descoberta com a qual dissipou suas trevas mais íntimas. ''A busca científica é uma entrega ao mistério maiúsculo, é essencialmente espiritual'', diz. ''Nessa procura, que você faz às cegas, apalpando o desconhecido, você está inventando o que significa ser você. Somos todos feitos de estrelas. Todo o carbono, o manganês, o cálcio que tem em seu corpo vieram de uma supernova que explodiu perto da nebulosa solar há 5 bilhões de anos. Quando você se coloca como um ser cósmico, a perda se transforma em algo mais aceitável porque é a lei do Universo. Quando você destrói alguma coisa, outra é criada.''
Gleiser criou muito. Dez anos depois do primeiro prêmio, um nada para o Universo, ele se expandiu. Tanto que se dá ao luxo de mudar de área, uma ousadia para poucos na Ciência: vai se dedicar à Astrobiologia - o estudo da vida na Terra e em outros planetas. Isso depois de escrever dois livros de divulgação científica e ganhar dois Jabutis - o principal troféu da literatura brasileira. Acabou de lançar o Micro Macro, coletânea de suas colunas na Folha de S.Paulo. Prepara-se para publicar o primeiro romance, 100 mil palavras sobre a vida de Johann Kepler (1571-1630), o medidor dos céus. Quem leu, diz que ele ficará mais famoso do que já é.
Ele vive numa casa na floresta. O rio passa quase na porta
A geografia de Gleiser não ficou circunscrita à literatura. Uma peça do grupo Arte Ciência, inspirada no primeiro best-seller (A Dança do Universo), estreou no Festival de Curitiba, fez temporada em Portugal e estará nos palcos de São Paulo em agosto. Em maio de 2006 vai estrear nos cinemas O Maior Amor do Mundo, de Cacá Diegues. O roteiro foi escrito pelo cineasta com a colaboração do cientista. Conta a história de um astrofísico que volta ao Brasil - as coincidências, jura ele, acabam aí. No papel, José Wilker. ''Em meu filme anterior, Deus É Brasileiro, o Marcelo já tinha colaborado comigo, esclarecendo dúvidas científicas sobre a criação do mundo'', conta Diegues. ''Ele é um cientista moderno, preocupado com o homem no centro de sua ciência. Tem compaixão, imaginação e humor.'' Outro roteiro, em parceria com o americano David Glass, circula por Hollywood. Esse é um filme de ficção científica de US$ 130 milhões em que a Terra é ameaçada por tempestades solares, bem ao gosto cataclísmico dos americanos - com a diferença, sublinha Gleiser, que tem ''a Física correta''.

Com essa capacidade de propagação, esperava-se que, por uma espécie de lei física das compensações, Gleiser fosse corcunda. Ele é loiro, tem olhos azuis, 1,79 metro, 68 quilos. Mantém o físico de atleta: em 1975 foi campeão brasileiro de vôlei. Seu levantador era ninguém menos que Bernardinho, o técnico da seleção de ouro do vôlei masculino. ''Desde menino ele sempre foi tão lindo que tirava o fôlego das pessoas'', conta o irmão mais velho, Luiz Gleiser, diretor de núcleo da TV Globo. ''Por isso, está acostumado a ter sempre muita gente olhando para ele. Gosta de aparecer.''
PAIZÃO Gleiser, com a filha Tali, de 9 anos (à dir.), e uma amiguinha, em fevereiro
Diante da platéia, Gleiser discorre sobre buracos negros e supercordas de um jeito que todos entendem. Os fãs ficam fascinados, orbitam ao redor dele com idades e profissões as mais variadas - de office-boys a socialites. ''Nos livros dele parece que o Universo se abre'', resume a brasiliense Aline Guimarães, de 22 anos. Sem poder viajar para São Paulo no fim de junho para prestigiar a última aparição de Gleiser no Brasil, Aline despachou a tia para representá-la. ''Ele ajudou a encontrar meu caminho. Vou trocar a Psicologia pela Física. Como o Universo, estou em expansão!''
Gleiser vive hoje em Hanover, no Estado de New Hampshire. Sua casa se esparrama em uma floresta emoldurada por montanhas. O rio passa quase na porta. Semanas atrás ele cortava grama - tarefa que detesta - quando Jô Soares ligou querendo dirimir algumas dúvidas sobre a relatividade. Caetano Veloso é outro de seus fãs famosos: conta que se inspirou na obra de Gleiser para compor ''Livros''.
Dentro da paisagem de calendário, Gleiser faz alpinismo, passeia de caiaque e pesca trutas - mas as devolve vivas à agua, embora um tanto machucadas. ''Quando ele era pequeno, se equipava e saía todo compenetrado para pescar'', conta o irmão Luiz. ''Só pegava uns peixinhos. Ficava vendo o céu e cismando.'' Gleiser brinca que fica ''pensando no que a truta está pensando''. Pensa tanto na truta que atualmente estuda - seriamente - o que seria o cúmulo do politicamente correto: pincelar com iodo a garganta dos peixes para que não tenham uma infecção.
CENÁRIO PERFEITO
A vista de sua casa no meio da floresta, em Hanover.
Gleiser pode ganhar até US$ 10 mil por palestra, mas faz de graça para quem não pode pagar. Divide a mesa não só com astros da Ciência, mas também com superstars como a cantora Laurie Anderson. Entre seus mentores estão o médico e escritor cult Oliver Sacks, que costuma recebê-lo de chinelo e pijamas em seu apartamento de Nova York. ''Gleiser possui uma mente larga o suficiente para abarcar tanto os mitos primordiais da criação como os últimos avanços da cosmologia'', elogia Sacks. ''Seus livros são maravilhosos.''
Outro amigo é o prêmio Nobel de Química de 1981, Roald Hoffmann. ''Gleiser é a estrela mais brilhante de uma pequena constelação que consegue escrever numa língua que todos entendem'', derrama-se Hoffmann. ''O que faz com que se destaque é sua disposição de se engajar na condição humana. Ele nos conta não apenas sobre os engenhosos modos com que tentamos entender o mistério que nos cerca, mas também a nós mesmos.'' Hoffmann e Gleiser, aliás, desfilaram pela Unidos da Tijuca em 2004, vestidos de Santos Dumont. Gleiser não samba, mas assegura que se ''mexe'' bastante.
Viaja pelo mundo em cruzeiros de caçadores de eclipses. É trabalho
O cientista vive com a segunda mulher, Kari, uma bela psicóloga. Os três filhos do primeiro casamento, com uma agente imobiliária, são Andrew, de 16 anos, Eric, de 12, e Tali, de 9. Passam uma parte do tempo com a mãe, outra com o pai. Gleiser sente-se só. ''Quero voltar ao Brasil assim que minha filha caçula for à universidade'', conta. ''Sinto falta de sentar num bar com um amigo e largar a alma na mesa. Nos Estados Unidos convido as pessoas para ir lá em casa. Elas vão e parecem se divertir. Mas depois ninguém me chama. Fico pensando: será que fiz alguma coisa errada? Não quero envelhecer assim.''
Gleiser adora cozinhar, especialmente pratos tailandeses. E sabe tudo sobre vinhos. Os gostos cinematográficos passeiam de Ingmar Bergman e Andrei Tarkovski a Steven Spielberg. Os literários viajam dos contos de Poe e da poesia de Fernando Pessoa aos contemporâneos José Saramago e Salman Rushdie. Prefere música erudita, em cujas sinfonias migrou de Mahler para Brahms, mudança que atribui a uma certa calmaria da maturidade.
FAMÍLIA
Com a mulher, Kari, e o filho Eric, de 12 anos
Com a matemática só se reconciliou na universidade, gostava mesmo era de tocar violão. Até hoje improvisa. Só não foi músico porque o pai, o dentista Izaac, garantiu que morreria de fome. ''Essa idéia de que existe ritmo em tudo na natureza já ressonava na minha cabeça de forma inconsciente. Uma certa dança das coisas.'' Para falar sobre a dança do Universo, Gleiser costuma embarcar em cruzeiros marítimos pelos mares do mundo em companhia de uma espécie singular de turistas: os caçadores de eclipses. Pagam em torno de US$ 1.500 para que ele esteja lá. Num deles foi de Zanzibar a Madagáscar, em outro navegou pelo Mar Negro. Aproveita para fazer mergulho. Para relaxar dessa vida, ele pratica ioga.
Esse Gleiser solar data do final da adolescência. Por volta dos 20 anos, ele decidiu se deitar no divã. Procurou um gigante, Hélio Pelegrino. O psicanalista escutou sua precoce trajetória de perdas e o despachou para a rua, dizendo mais ou menos o seguinte: ''Você não vai ganhar nada com a psicanálise. O mais importante na vida é a pró-cura. Você procura através da Ciência''. Os amigos de Gleiser ficaram revoltados: ''Pô, o cara te deu alta na entrevista!''.
Marcelo Gleiser procura até hoje.
Medindo a alma de Kepler
Marcelo Gleiser fala sobre seu primeiro romance, ainda inédito
Escrita primeiro em inglês, a biografia de Johann Kepler consumiu quase três anos da vida de Marcelo Gleiser. Será lançada pela Cia. das Letras em 2006. O título - Skybound - ainda não tem tradução em português.
Maurilo Clareto/ÉPOCA
ÉPOCA - Como foi escrever um romance?
Marcelo Gleiser -
Foi a coisa mais difícil que eu fiz em minha vida. Sou fascinado por Kepler, que criou a ciência dele como se fosse um apóstolo. Dizia que a geometria é a linguagem que criamos para entender a mente divina. Era um cara torturado, que só encontrava paz nas esferas. Sua mãe quase foi queimada como bruxa, ele viveu no tempo da Guerra dos 30 Anos entre católicos e protestantes. Esse livro é uma metáfora para os dias de hoje. É um espelho porque o mundo está novamente polarizado por guerras religiosas. Mas é mais do que isso, porque conto a partir de duas linhas temporais, a do próprio Kepler e a de seu mentor, Michael Mastlin. Ninguém o conhece. Esse é o lance. Esse livro é o Amadeus da Ciência.
ÉPOCA - Você se refere ao Amadeus de Peter Shaffer, transformado depois em filme por Milos Forman, sobre a relação entre Mozart e Antonio Salieri?
Gleiser -
A diferença é que o Salieri não era professor do Mozart, como o Mastlin era. O Mastlin se desesperava porque era um bom astrônomo, mas nunca faria o que o Kepler fez. O livro é também essa angústia da mediocridade, de você ser criativo o suficiente para perceber a genialidade do outro.
ÉPOCA - O que isso tem de você?
Gleiser -
Eu já me senti burro e gênio. Já tive alunos brilhantes e alunos burros. Já fui considerado brilhante e burro por meus professores. Esse tema é universal. O novo contra o velho. Dedico esse livro a meus mentores vivos e mortos.
ÉPOCA - O que é ficção e o que não é?
Gleiser -
Todos os fatos do livro aconteceram. É um romance biográfico. Segui os passos do Kepler por três semanas: Alemanha, Áustria, Praga. Sentei à mesa em que ele sentava, li o livro que ele estava lendo. Tenho a correspondência trocada entre Kepler e Mastlin. Li toneladas de coisas. Tentei encarnar a vida dele. Reescrevi três vezes.
ÉPOCA - Foi difícil?
Gleiser -
Nunca chorei escrevendo um livro de não-ficção. Neste chorei. É verdade o que os escritores falam, de que os personagens dominam a gente. Eles me puxavam pela mão. Estavam vivos dentro de mim. Então, quando passavam por um momento difícil ou catártico, eu chorava. Eu me deprimi muito quando o livro acabou. Entendi por que algumas mulheres se deprimem depois do parto. Na gravidez aquele filho é seu, está dentro de você. De repente sai e está lá fora, é uma outra pessoa. Eu me sinto assim.
ÉPOCA - Todo esse caminho, e agora esse romance, ajudou-o a lidar com a morte?
Gleiser -
Não. Tenho medo de morrer. Que eu saiba, é o fim.

O planeta Gleiser

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