domingo, 11 de maio de 2003

Vida, difração e DNA

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A sabedoria do homem livre consiste em meditar sobre a vida e não sobre a morte." Assim escreveu o filósofo Baruch Spinoza em seu famoso livro "Ética", de meados do século 17. Não por acaso, Erwin Schrödinger, um dos grandes físicos do século 20, usou essa mesma frase em seu livro "O que É Vida?", uma das obras mais influentes no desenvolvimento da biologia molecular e, em particular, da genética após a Segunda Guerra. O livro é uma compilação de uma série de palestras que Schrödinger proferiu na Universidade de Dublin, Irlanda, em 1943.

Admitindo não ser um especialista no assunto, Schrödinger propõe que o fato de a física e a química não serem capazes de explicar o que ocorre em organismos vivos não deve ser visto como uma barreira intransponível, mas como um desafio: o mistério da vida é, essencialmente, província da ciência. Aceita essa razoável premissa, a questão é como abordá-lo cientificamente.
Schrödinger sugere que a "fibra cromossômica", onde reside a informação genética característica de cada indivíduo, é um cristal aperiódico, em distinção daqueles comumente tratados pelos físicos, que são na maioria periódicos. É claro que os cristais periódicos são bem mais simples que os aperiódicos. Schrödinger mesmo faz a comparação: é como olhar para um papel de parede ordinário, com o mesmo padrão se repetindo regularmente, e uma tapeçaria de Rafael, que, sem apresentar uma repetição monótona, oferece uma coordenação de padrões elaborados cujo efeito final é gerar um significado único.

A estrutura periódica dos cristais é revelada por meio de técnicas de difração de raios X. Esses são os mesmos raios X usados por dentistas e médicos, uma radiação eletromagnética de frequência bem mais alta do que a luz visível. A difração é um efeito que resulta da superposição de ondas sucessivas -ora construtiva (duas cristas se somando), ora destrutiva (crista e depressão se cancelando)- quando elas passam por um ou mais obstáculos. Quando raios X são bombardeados sobre um cristal, eles encontram obstáculos -os átomos que compõem o cristal. Se uma placa fotográfica é exposta aos raios X após passarem por um cristal, o resultado é a reprodução detalhada de sua estrutura periódica.

O problema, claro, fica bem complicado quando o cristal não tem uma estrutura periódica, já que o espaçamento entre os átomos não é mais uniforme. Mais ainda, se o cristal tiver milhares ou mesmo milhões de átomos, a tarefa torna-se quase impossível, um quebra-cabeças de proporções gigantescas. Esse era, justamente, o desafio daqueles que tentavam desvendar a estrutura de proteínas usando difração de raios X.

Schrödinger sugere também que a transmissão de características de uma geração a outra ocorre no nível molecular, através de um processo genético de cópia de informação. Em 1944, um ano após as palestras de Schrödinger, o biólogo americano Oswald Avery propôs que os genes são compostos por uma macromolécula conhecida como DNA (ácido desoxirribonucléico). O código da vida, as características de cada animal e pessoa, está registrado na estrutura dessa molécula. O desafio era decifrá-lo.

Entram em cena Francis Crick, um físico especialista em difração de raios X, e James Watson, um biólogo determinado a decifrar a estrutura do DNA. Ambos trabalhavam em Cambridge, Reino Unido, cientes das idéias de Schrödinger de que os genes têm sua estrutura definida ao nível molecular. Em Londres, no King's College, Rosalind Franklin e Maurice Wilkins obtiveram as primeiras imagens, ainda não muito claras, de cristais de DNA usando difração de raios X.

Crick e Watson se lançam de corpo e alma ao desafio e, em abril de 1953, há 50 anos portanto, mostram que o DNA tem a estrutura de uma hélice dupla, com quatro bases nitrogenadas (A, T, C e G) se alternando duas a duas.

Schrödinger estava correto: o código genético reside mesmo no nível molecular, definido e propagado de geração em geração. Como ele disse, mesmo que os cientistas sejam na sua maioria especialistas em uma determinada área do conhecimento, almejam sempre expandi-lo. Sua obra é prova de que a coragem de pular as fronteiras entre as disciplinas muitas vezes cria pontes inesperadas.

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