quinta-feira, 8 de janeiro de 2004

O espírito da coisa

Marcelo Gleiser
especial para a Folha

Após viagem de quase seis meses, no último dia 4 a sonda Spirit (Espírito), da Nasa (agência espacial americana), pousou em Marte. O local do pouso é a cratera Gusev, onde cientistas acreditam ter existido um lago. Imagino que o leitor já tenha visto fotos enviadas pela sonda ou esteja a par do acontecimento por este jornal ou outros meios. Não dá para exagerar o quanto é impressionante esse feito tecnológico.

Quem já brincou com carrinho de controle remoto sabe que não é fácil evitar acidentes, colisões ou interrupções na transmissão de sinais, mesmo quando se vai só da sala de jantar até o quarto. Imagine quando o carrinho é um foguete que tem de pousar em um planeta ao qual ninguém jamais foi, a uma distância de 80 milhões de quilômetros.

Recentemente, assisti a um programa da série "Nova", de documentários científicos semanais (é, a televisão americana encontra espaço para excelentes documentários semanais sobre ciência), do canal público PBS (Public Broadcasting System), que apresentava a construção da Spirit: os inúmeros testes, os momentos angustiantes (quando toda a missão estava para ser cancelada se uma falha não fosse consertada em dias), os momentos de triunfo (quando os testes funcionavam), enfim, anos de trabalho envolvendo centenas de engenheiros, técnicos e cientistas que desbravavam as fronteiras da tecnologia espacial.

Quando a câmera mostrava os cientistas trabalhando, eu via um grupo de garotos e garotas brincando com seus carrinhos de controle remoto, empinando pipa, gritando e chorando, extasiados com a possibilidade de dedicar suas vidas à exploração do desconhecido, misturando o lúdico com o profissional. Não é à toa que o grande físico americano Isidore I. Rabi dizia que os cientistas são os "Peter Pans" da sociedade.

Marte é mesmo um lugar estranho: o céu é rosa, e o pôr-do-sol, azul. A temperatura pode variar em mais de 30C dos pés à cabeça. Um de seus vulcões é maior do que o Estado de São Paulo. Montanhas são mais altas do que o monte Everest. O frio é terrível e constante, e o vento, horrendo. Decididamente, Marte não é um lugar para passar as férias. Que sejam antes enviados os robôs. Se os portugueses tivessem robôs no século 16, certamente os teriam mandado antes.

Spirit é a quarta missão a pousar em Marte. Os ingleses, coitados, perderam contato com o seu robô Beagle-2, que chegou a Marte alguns dias antes da Spirit. Duas sondas Viking pousaram lá nos anos 70, e a Pathfinder chegou em 1997. Seu carro robotizado, Sojourner, circulou pela superfície por meses, encantando o mundo. O seu sítio na internet é o mais visitado em toda a história. Mas nenhuma dessas missões se compara à Spirit e à sua companheira, Opportunity, que deve pousar no próximo sábado.

Oito minutos antes da "marterrissagem", a espaçonave libera o módulo que irá chegar ao solo. Ele deve atingir a atmosfera a um ângulo de 11,5. Um erro de 0,2 e ele ricocheteia para o espaço ou explode na atmosfera. Divida um círculo em 1.800 segmentos iguais; esse é um ângulo de 0,2. O módulo entra com uma velocidade de 20 mil km/h e tem apenas seis minutos para chegar à velocidade zero no solo.

Um escudo aumenta a fricção (brilhando como um pequeno sol) e diminui sua velocidade até 1.600 km/h. Um pára-quedas abre e a velocidade cai para 300 km/h. Um cabo de 30 metros é usado para baixar a sonda de dentro do módulo, como um bebê em um cordão umbilical. Um cinturão de bolsões de ar de três metros de altura infla em torno da sonda em meio segundo, e retrofoguetes entram em ignição para diminuir ainda mais a velocidade. Imediatamente antes do pouso, o cabo é cortado e a sonda cai, quicando pela superfície feito uma bola até parar. Todos esses estágios tiveram de funcionar perfeitamente para o sucesso do pouso. E todos funcionaram.

O objetivo principal da missão é encontrar água líquida ou seus vestígios. Por isso o pouso no suposto lago. Sem água, a vida é impossível, ao menos nas formas que conhecemos. Marte pode nos surpreender. Espero que sim. Mas, caso não seja com alguma forma de vida, presente ou passada, será com outra coisa. E tudo isso porque alguns garotos nunca deixaram de brincar com seus carrinhos de controle remoto.

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