quarta-feira, 20 de outubro de 2004

Entrevista Istoé 20/10/2004

A alma não existe
Marcelo Gleiser

Ganhador de dois Jabuti, físico diz que a ciência está em constante mutação e que é um erro buscar na religião as respostas para o mundo
Darlene Menconi
Vidal da Trindade/AE
• Mestre em física, doutor pelo King’s College da Inglaterra
• Professor catedrático da Faculdade Dartmouth, em New Hampshire (EUA)
• Prêmio Jabuti de 1998 e 2002 pelos livros A dança do universo e O fim da Terra e do céu
• Bolsista da NSF, fundação de ciência americana, e da Nasa, agência espacial americana
• Idade: 45 anos

Certa vez, a escritora Raquel de Queirós justificou seu ateísmo dizendo que a culpa não era sua. “Deus me deu pouca fé”, explicou. Do mesmo mal padece o físico e escritor Marcelo Gleiser, que, apesar de jovem, é uma das principais vozes da divulgação científica. Tanto que recebeu, das mãos do ex-presidente Bill Clinton, um prêmio por sua dedicação ao estudo e à pesquisa em cosmologia. De origem judaica, Gleiser frequentou a sinagoga quando pequeno, mas não achou inspiração nas tábuas divinas.

Aos 45 anos, e há 22 anos vivendo nos EUA, ele não perdeu o sotaque carioca. Muito menos o prazer em buscar respostas para os mistérios do universo, da vida e da mente. Conforto e paz de espírito ele afirma encontrar na natureza, no amor e nos filhos, de 15, 11 e oito anos. Eleitor de John Kerry, a quem doou dinheiro para a campanha, Gleiser não aposentou os planos de retornar ao Brasil. Professor de física e filosofia natural de uma das mais conceituadas faculdades americanas, a Dartmouth, em New Hampshire, ele ganhou dois prêmios Jabuti por seus livros sobre o universo e o embate entre ciência e religião, um de seus assuntos preferidos. Gleiser acaba de escrever, em inglês, um romance sobre o astrônomo alemão Johannes Kepler (1571-1630), que conviveu com o italiano Galileu Galilei, condenado pela Igreja por defender que o Sol, e não a Terra, era o centro do universo. “Sou profundamente místico”, diz Gleiser, cujo hobby é a pesca com isca artificial (fly fishing). “É uma atividade zen, em que é preciso estar em contato com a água, o céu, o peixe e o sol”, explica o físico, que falou a ISTOÉ antes de embarcar para uma série de palestras no Brasil.

ISTOÉ – Por pressão religiosa, algumas escolas do Rio de Janeiro não ensinam a teoria da evolução, na qual humanos descendem de macacos. Qual sua opinião sobre isso?
Marcelo Gleiser –
É um absurdo. Em Kansas (EUA), houve muito debate sobre isso e se decidiu que a teoria da evolução seria ensinada junto com o texto bíblico, como uma alternativa. Depois de dois anos, eles reverteram a decisão e voltaram a ensinar a teoria da evolução como a única válida para descrever como os animais evoluíram na Terra. O Estado de Ohio vive discussão parecida. Não se pode apresentar religião como a descrição científica do mundo. Isso é o que se fazia há 500 anos. É justamente contra esse dogmatismo da Igreja que Galileu lutou. É perigoso usar como científico qualquer texto religioso criado para servir de parâmetro ético e moral das pessoas.

ISTOÉ – Qual a linha que divide ciência e religião?
Gleiser –
Elas são complementares. A ciência se propõe a descrever o mundo natural, com a maior precisão possível. Não se propõe a ser bengala espiritual. Se alguém querido morre, ela não tem nada a dizer. Nisso, a religião é imbatível. Essa é a razão pela qual, mesmo numa sociedade tão tecnológica e científica, ainda existe tanta gente religiosa. O ser humano é um ser espiritual. As pessoas vão em massa às igrejas, sinagogas e mesquitas procurar consolo, espírito de comunidade e fraternização. Já a ciência é uma narrativa que evolui. Sua função é descrever o mundo e explicar nosso papel dentro dele.

ISTOÉ – Sendo assim, sempre haverá meias-verdades?
Gleiser –
O universo em que um cara do século XVI vivia, quando a Terra era o centro de tudo, é diferente do século XVIII, quando o Sol já era o centro, e é diferente do nosso universo, que não tem centro e se expande em todas as direções. Não há verdades finais em ciência. O mundo está sempre se transformando. Acho possível encontrar espiritualidade na descrição científica do mundo. Sou do time do (Albert) Einstein, que dizia que esse questionamento sobre o desconhecido é essencialmente espiritual. Não significa acreditar numa entidade sobrenatural controlando o mundo. Ou na existência da alma e de outras coisas além das leis da natureza.

ISTOÉ – Na sua opinião, não existe alma?
Gleiser –
Eu adoraria ter alma e, quando meu corpo pifasse, poder renascer em outro corpo. Histórias de espiritismo, de vida após a morte e as várias versões das religiões para isso são mecanismos que criamos para lidar com nosso problema mais fundamental, que é a mortalidade. Vários amigos espíritas dizem que a maneira científica de pensar o mundo é apenas uma. Existem outras. Usar a ciência para justificar a existência ou não da alma nunca vai dar certo. No século XVII, o que se chamava de eu, a pessoa, vinha da alma. Quando a pessoa morria, a alma ia embora e o corpo ficava. Toda a noção de ser humano era relacionada à existência ou não dessa faísca divina. Aristóteles achava que a alma ficava no coração, assim como os egípcios. Não se sabia que o centro era na cabeça. Hoje, a gente sabe que não tem alma e que o cérebro é um organismo extremamente complexo.

ISTOÉ – Como se pode ter conforto diante dessa visão?
Gleiser –
Ninguém aceita a mortalidade. O que a gente faz é se contentar com explicações e se encantar mais ou menos com as possibilidades sobrenaturais. Tem aqueles que se encantam muito e vão a terreiros de macumba, recebem espírito, etc. E tem os que se encantam menos, como eu, que não acreditam nesse mundo paralelo. A questão entre ciência e religião é parte fundamental do meu próximo livro, um romance histórico baseado na vida do astrônomo alemão Johannes Kepler, que viveu no início do século XVII. Ele é famoso por descobrir que as órbitas planetárias são elípticas e não circulares. Sua vida é um dos episódios mais fascinantes da ciência. Ele tinha um pé na Idade Média e seus misticismos, e outro na modernidade e na revolução científica. O livro conta a história de sua vida, em uma Europa imersa no caos, dividida por guerras religiosas entre católicos e protestantes, bruxas sendo torturadas e queimadas, Galileu julgado pela Inquisição na Itália. De muitos modos essa realidade retrata os dias atuais, com disputas religiosas, intolerância e iniquidade social.

AE
"Histórias de espiritismo, de vida após a morte são mecanismos que criamos para lidar com nosso problema fundamental, que é a mortalidade"
ISTOÉ – Como é possível comparar os dias atuais com a Idade Média, quando as disputas acabavam na fogueira?
Gleiser –
Por volta de 1600, a Europa estava dividida entre protestantes e católicos. Entre os protestantes, brigavam luteranos e calvinistas. As pessoas morriam feito moscas. No século XVII, a Igreja Católica tinha muito poder na Itália e algum na Alemanha e na Boêmia, parte do que é hoje a República Tcheca. Quem tinha terras, dinheiro e poder eram barões e condes protestantes. Havia uma disputa de fundo religioso que na verdade era pelo controle das terras. Agora é o cristianismo contra o islamismo. Temos os EUA como potência imperialista tentando impor seus valores morais. Parece uma cruzada ideológica, mas é uma tentativa de colocar pé firme no Oriente Médio, não só em Israel, mas numa potência como o Iraque, onde está o petróleo. Por trás dos grandes conflitos religiosos há sempre o engenho político e econômico.

ISTOÉ – Qual o efeito da intolerância no pensamento científico?
Gleiser –
Um exemplo importante é o que chamo das “três origens”, do universo, da vida e da mente. Todas as religiões, de uma maneira ou de outra, têm respostas para essas perguntas. A mais conhecida, que vem do Velho Testamento, é a criação do mundo e a idéia da alma, que dá consistência ao espírito. Diferentes religiões têm diferentes explicações. Todas, por natureza, são inflexíveis. Não se pode questionar a palavra divina. Isso é o dogma da religião. A informação vem de cima para baixo, não tem conversa. Os padres, sacerdotes, rabinos e monges são intérpretes da verdade divina. Na ciência, a estrutura é horizontal, o conhecimento pode ser descoberto por qualquer pessoa e, em princípio, há um fórum para discutir idéias. Quando um cientista tem uma idéia sobre a origem do mundo, ele ou ela escreve artigos e vai a conferências nas quais busca provar sua veracidade. Se for provada errada, joga-se a idéia no lixo. Existe uma evolução construtiva do saber.

ISTOÉ – Seria possível explicar fatos religiosos como o dilúvio e a Arca de Noé?
Gleiser –
Acho perfeitamente razoável tentar justificar fatos bíblicos usando a pesquisa científica. Afinal de contas, os livros da Bíblia foram escritos por pessoas que relatavam uma história, carregada de simbolismo. O grande perigo é usar textos religiosos como científicos. Se alguém fala que está escrito na Bíblia que o mundo tem 6.775 anos porque ali foi a gênese e Abraão foi o primeiro patriarca, isso é um erro, obscurantismo. A Terra tem em torno de 4,6 bilhões de anos. Não há dúvida disso.

ISTOÉ – Mais de 90% do universo é composto de uma força misteriosa. Será que Shakespeare estava certo ao dizer que “há mais coisas entre o céu e a terra do que sonha a nossa vã filosofia”?
Gleiser –
A chamada energia escura passou a dominar o universo há mais ou menos cinco bilhões de anos. Ela não tem um papel na origem do cosmo. Essa descoberta foi em 1998 e é um ótimo exemplo de como as coisas mudam. Foi uma surpresa para todo mundo. Não sabemos o que é essa tal energia escura, nem como será o futuro do universo. O paradoxo é que a natureza é muito mais esperta do que nós. Quanto mais se sabe, mais há o que descobrir. Outras perguntas surgem, e é isso o que torna a ciência emocionante. Não há uma reta final, só a contínua busca pelo conhecimento.

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ISTOÉ – Só que a ciência também virou um ramo de negócios, com lucratividade e retorno financeiro.
Gleiser –
É importante separar ciência das aplicações tecnológicas da ciência. A nanotecnologia, a biotecnologia, a microeletrônica, o GPS, os celulares cada vez mais incríveis, a internet, tudo isso é aplicação da ciência para o mercado econômico. O mecanismo que gera esse tipo de aplicação não tem nada a ver com a exploração da natureza. São universos diferentes. Essa apropriação da tecnologia pelo mercado é um lado da ciência, e é filosófica e culturalmente menos interessante do que o lado da ciência que gera conhecimento sobre o mundo e as pessoas. Quando falo do romantismo do cientista, falo do lado explorador, de pessoas que se confrontam diariamente com o não-saber. Somos os descobridores da natureza, os que vão ampliar as fronteiras do mundo. E olha só quantas fronteiras têm sido descobertas através de telescópios, microscópios, mundos antes invisíveis. Há uma beleza, uma simplicidade e mesmo uma elegância com que a física descreve a natureza.

ISTOÉ – E por que é tão difícil entender o que dizem os cientistas?
Gleiser –
O mesmo princípio usado para fazer pizza serve para descrever como nascem as galáxias. E também para explicar como uma patinadora dá piruetas no gelo. Ela começa com os braços estirados, traz os braços para o peito e gira mais rápido. É o mesmo princípio que explica como se gira a massa da pizza no dedo para ela ficar achatada nos pólos e se alongar no equador, e é assim que nasceu o sistema solar e as galáxias. Não tem poesia e elegância quando se consegue descrever tantas coisas diferentes com as mesmas idéias? O que falta no ensino da física é mostrar sua relação com o mundo em que se vive. Quando se escreve uma fórmula no quadro-negro, ninguém dá bola. Informar o público é fundamental para nossa sobrevivência em um contexto global cada vez mais dependente da ciência e suas aplicações.


Vidal da Trindade/AE


"O mesmo princípio
usado para fazer pizza serve para descrever como nascem as galáxias e como a patinadora dá piruetas no gelo"

ISTOÉ – Um dia vamos habitar outros planetas, como Marte?
Gleiser –
Não há outra saída. A Terra tem os dias contados. Vivemos num sistema que tem uma estrela, o Sol. Como toda estrela do universo, um dia ela vai pifar e se tornar uma gigante vermelha. Vai inchar, engolfar Mercúrio, Vênus e chegar pertinho da Terra. Isso ainda demora bilhões de anos, mas em centenas de milhões de anos, o Sol vai tornar impossível a vida na Terra. A verdade é que, se a gente ainda existir até lá, de forma a preservar o que somos, temos que colonizar o sistema solar e a galáxia. O destino do ser humano é se espalhar pelo universo. Muito possivelmente, há outras regiões, outros universos, separados do nosso.

ISTOÉ – Existe vida em outros planetas?
Gleiser –
São centenas de bilhões de galáxias como a Via Láctea. Pense no universo como uma bolha de 13,8 bilhões de anos-luz. Não sabemos o que existe fora da bolha. Não significa que não existam outras galáxias, estrelas e sistemas solares onde não enxergamos. Em cosmologia, se diz que vivemos num multiverso. Nossa bolha é só uma de infinitas outras. Parece até um conto do Jorge Luis Borges (escritor argentino), são milhões de mundos pululando por aí.

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