domingo, 10 de março de 2002

O grande caldeirão cósmico

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Em noites claras, sem lua, é possível ver, ao menos longe o suficiente das luzes da cidade, um tênue corredor de luz, uma mancha de poeira luminosa estendendo-se pelo céu. Essa mancha é parte da Via Láctea, galáxia que é a nossa casa cósmica. É difícil, da nossa perspectiva terrestre, ter uma idéia das dimensões da Via Láctea. Foram necessários mais de 2.000 anos de astronomia para que fosse demonstrado que ela não é a única galáxia no Universo, mas apenas uma entre centenas de bilhões de outras.

Sem dúvida, essa descoberta, atribuída ao astrônomo americano Edwin Hubble em 1924, revolucionou a visão existente até então de nosso lugar no Universo. O Universo passou a ser muito maior, um oceano vazio, pontilhado por ilhas aqui e ali, cada uma delas uma galáxia. E nós, sozinhos em uma delas, flutuando pelo espaço, nosso planeta girando em torno de uma estrela bem simples, uma entre centenas de bilhões de outras. E pensar que, até em torno de 1610, acreditava-se que a Terra fosse o centro do Universo.

Muitas pessoas que conheço, cientistas ou não, acham uma galáxia espiral como a Via Láctea um dos objetos mais belos que existem. Os braços de gás e estrelas, encurvando-se elegantemente na direção de rotação em torno de um centro luminoso, lembram a estrutura de um redemoinho em torno de uma depressão profunda, como se uma criatura estivesse sugando vorazmente a matéria que se atreveu a passar perto demais de suas garras. Essa imagem, de algo residindo no centro da galáxia, corresponde à realidade, segundo observações astronômicas recentes. O centro da galáxia, a 26 mil anos-luz da Terra, é um verdadeiro caldeirão cósmico, berçário de várias estrelas e estação final de inúmeras outras.

O grande monstro residindo no centro da galáxia é um buraco negro com uma massa gigantesca, equivalente à de 2,5 milhões de sóis. Buracos negros são os objetos mais exóticos que se conhece no Universo. Os comuns têm massas não muito maiores que a do Sol (10 ou 20 vezes maiores) e aparecem quando estrelas muito maciças deixam de gerar a radiação necessária para contrabalançar a própria gravidade. Como um balão que vai murchando (mas sem deixar o ar escapar), a estrela vai ficando cada vez menor e mais densa. E como a gravidade aumenta com a densidade do objeto, a gravidade da estrela vai crescendo cada vez mais, fazendo com que a estrela encolha progressivamente. Aí vem o problema: segundo a teoria da relatividade geral, de Einstein, a gravidade pode ser interpretada como a curvatura do espaço em torno de um corpo maciço. Portanto, quanto mais denso o corpo, maior a gravidade à sua volta e maior a curvatura do espaço à sua volta. No caso extremo de um buraco negro, a curvatura é tamanha que o espaço se fecha sobre si mesmo como uma ostra, e nada escapa de seu interior -nem mesmo a luz.

Para concluir que, de fato, um buraco negro gigante habita o centro da Via Láctea, astrônomos precisaram criar modos de "ver" o que acontece por lá sem usar a luz visível. Isso porque, como o leitor pode imaginar, é impossível ver o que ocorre no centro galáctico, pois ele é cercado por densas nuvens de gás e poeira. Felizmente, existem outros modos de ver sem utilizar a luz visível, outras formas de radiação que atravessam a densa "neblina" central. Em um incêndio, sabemos que existe uma intensa fonte de calor, mesmo que ela esteja cercada por fumaça. O calor é radiação infravermelha, invisível aos olhos mas nem por isso menos real do que a luz visível. O mesmo vale para os raios X, que podem penetrar objetos opacos à luz visível. Essas outras formas de radiação, que incluem as ondas de rádio, os raios gama e a radiação ultravioleta, também pertencem ao espectro das ondas eletromagnéticas. A astronomia moderna vê o Universo com múltiplos olhos, capazes de enxergar realidades que antes eram totalmente invisíveis.

Imagens do Observatório Espacial de Raios X Chandra revelam uma enorme atividade em torno do centro galáctico: emissões de raios X extremamente energéticas devido a mais de mil estrelas superdensas sugando a matéria de suas vizinhas; uma nuvem em torno do centro emitindo raios X menos energéticos, restos de estrelas que foram sugadas pelo buraco negro há centenas de anos, quando o seu "apetite" era maior. E a Via Láctea não é único caldeirão cósmico: cada galáxia tem o seu, com um gigantesco buraco negro em seu centro.

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