domingo, 24 de março de 2002

Horror à ciência

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Imagino que o leitor se interesse por ciência. Caso contrário, por que estaria lendo esta coluna? Pois nós, você e eu, pertencemos a uma minoria. Crescente, mas ainda uma minoria.

Infelizmente, pouca gente percebe a importância da ciência em sua vida. Existe a influência mais explícita, ligada às inúmeras tecnologias que definem o estilo de vida da sociedade moderna. O que seria da vida sem carros, telefones celulares e computadores cada vez mais rápidos e fáceis de usar? (Hoje, me abstenho de discutir a questão de como a afluência econômica determina o papel prevalente da tecnologia na sociedade. Tecnologia custa caro.)

Essas tecnologias que parecem surgir do nada são, na verdade, produto de anos de pesquisa, nos quais físicos, químicos e engenheiros tentam desenvolver materiais e produtos capazes de satisfazer uma demanda sem fim por mais velocidade e conveniência. Seria difícil imaginar uma volta ao passado. Quando eu era criança nos anos 60, ainda não existia TV em cores no Brasil, computadores pessoais ou videogames. Para um adolescente de hoje, a vida sem esses produtos seria absurda. Mas, tanto para a maioria dos adolescentes de hoje como para aqueles dos anos 60, a aula de ciência "é sacal", "perda de tempo". Por quê?

Eu não poderia deixar a medicina de lado. A expectativa de vida dobrou durante o século 20. E, certamente, se não dobrar, irá aumentar e muito no século 21. (Eu fico torcendo para isso.) Discute-se até o controle do envelhecimento celular, no qual os processos bioquímicos que determinam a deterioração da célula são desacelerados geneticamente, de modo que 20 anos de envelhecimento hoje corresponderiam a cinco anos no futuro. Outra possibilidade é uma espécie de imortalidade genética, onde os seus genes são preservados e o seu corpo, reclonado indefinidamente. Claro, o seu clone não é você, pois ele não terá as mesmas memórias. Mas até essa barreira poderá ser superada. Em princípio (muito em princípio), finalmente será possível reproduzir não só o seu corpo mas, também, a sua mente. Aí sim, a cópia será idêntica ao original.

Essa revolução da medicina, baseada em uma dupla revolução na genética e nas ciências cognitivas, está mais próxima do que imaginamos. O cenário pessimista descrito no filme "Inteligência Artificial", de Steven Spielberg, não veio de pura ficção, mas de questões em debate hoje em laboratórios e conferências científicas no Brasil e no resto do mundo. É possível contemplar um futuro no qual a sofisticação dos materiais e da bioeletrônica será tamanha que robôs se comportarão como seres humanos. Aliás, os robôs serão tão mais sofisticados do que nós que a nossa própria existência estará ameaçada; nós nos tornaremos supérfluos, à mercê de nossas criações, mais fortes e mais inteligentes do que nós.

Essa ciência assusta. Ainda mais se parece acontecer como por mágica, em laboratórios clandestinos controlados por cientistas seduzidos pela fama e manipulados por capitalistas interessados apenas no balanço final de suas empresas ou por militares obcecados por poder.

Nas mãos da ignorância, a ciência é rapidamente transformada em um monstro, causando um conflito estranho nas pessoas: por um lado, a sociedade é cada vez mais dependente das várias amenidades e confortos da vida moderna, das promessas de uma vida ainda melhor no futuro devido à incessante marcha da ciência. Por outro lado, a ciência também ameaça, cria armas de destruição global e local, podendo até comprometer a nossa posição como a espécie dominante na Terra. Pode-se até especular que a missão evolutiva da espécie humana seja criar uma nova espécie, de híbridos bioletrônicos que, mais dia, menos dia, acabarão por nos suplantar.

A ignorância gera o medo. Os monstros mudam, mas a reação é a mesma: tememos aquilo que não conhecemos ou que não podemos controlar. É aqui que entra a educação científica, elucidando, guiando, instruindo o cidadão de modo a que a ciência não seja vista como uma criatura horrorosa, um monstro com intenções destruidoras. É importante lembrar que a ciência não existe sozinha. Ela é criação nossa e somos nós, por meio de nossas escolhas dentro do processo democrático, que determinamos o que fazer com as descobertas que ocorrem nos laboratórios. O lado luz e o lado sombra da ciência são reflexos da nossa moralidade, do que a sociedade faz com o conhecimento que possui. Essa é a diferença entre o conhecimento e a sabedoria.

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