domingo, 3 de março de 2002

A teoria de tudo e a via do meio

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Reduzir para entender! Esse tem sido o brado retumbante da ciência moderna desde as suas origens no século 17, nas mãos de Galileu, Kepler, Newton e tantos outros. Newton reduziu a natureza a um imenso mecanismo constituído de massas pontuais sujeitas à ação de forças externas. A idéia de que tudo é composto por elementos menores, indivisíveis, é bem mais antiga do que a ciência moderna, datando do século 5º a.C., com Demócrito, Leucipo e outros filósofos da tradição atomista.

Sem dúvida, os átomos da ciência moderna têm pouco a ver com os átomos gregos. Mas o germe da idéia, de que é possível decodificar a complexidade da Natureza através da redução de seus sistemas em seus componentes mais básicos, permanece vivo até hoje. Há quem diga que os dias do reducionismo estejam contados. Não tomo essa posição tão extrema, mas acredito que as técnicas reducionistas não são eficazes no estudo de alguns dos problemas mais interessantes da ciência atual. É aqui que entra o que os físicos americanos Robert Laughlin e David Pines chamam de "via do meio".

Tomemos um organismo vivo, como o corpo humano. Cada órgão tem uma função bem determinada, que é desempenhada individualmente. No entanto, seja qual for a função individual do órgão em questão, ela faz parte de um conjunto de missões complementadas por outros órgãos. Se quisermos estudar a função e as propriedades de um determinado órgão, não podemos tratá-lo individualmente, mas sim como parte de um todo; um fígado isolado não vive e não desempenha as suas funções. De certa forma, um fígado isolado não é um fígado. Sua função só faz sentido quando integrada dentro do corpo humano. Se adotarmos um reducionismo extremo, temos de isolar todos os "componentes" do corpo para estudar seu funcionamento, o todo sendo igual à soma das partes. Acabamos por destruir o corpo. A vida um excelente exemplo de como o todo é muito mais do que a soma das partes.

A crítica ao reducionismo tem sido cada vez maior, especialmente na física. Um dos grande sonhos de muitos físicos é a obtenção da "teoria de tudo", um conjunto de leis fundamentais capazes de explicar todos os fenômenos naturais, da origem do Universo ao aparecimento da consciência na mente humana. Essa idéia também não é nova, sendo uma herança do pensamento de outro grego, Platão. Segundo ele, a essência de todas as coisas está no mundo das idéias e não no das sensações; o que vemos ou ouvimos pode nos iludir, mas o que existe no mundo da razão pura é perfeito. Por exemplo, a idéia de um círculo é perfeita, mas a sua representação no papel jamais o será. O sonho de construir uma teoria de tudo é a encarnação direta dessa conceituação do mundo natural, o clímax do ideal platônico de reduzir tudo a hierarquias, partindo do mais simples ao mais complexo com um único conjunto de leis.

Acredito que esse projeto, mesmo se ele vier a ser concluído um dia, será inútil na descrição de fenômenos onde comportamentos complexos surgem espontaneamente, "ordem vinda do caos".

A natureza não pode ser reconstruída exclusivamente como um desses jogos de blocos plásticos (como "legos"), em que algumas peças (as "partículas fundamentais") e alguns tipos de encaixe (as "interações fundamentais" entre essas partículas) determinam todas as estruturas possíveis. A mecânica quântica descreve muito bem o comportamento de átomos simples, com um, dois ou alguns elétrons. Mas ela é incapaz de descrever o comportamento de um átomo com 10 elétrons. O comportamento de átomos maiores tem de ser estudado por métodos aproximados, com graus variados de sucesso. Mesmo que seja verdade que tudo é composto por átomos, é impossível prever exatamente o comportamento de estruturas com muitos átomos. Mais ainda, o aumento da complexidade é acompanhado pelo aparecimento de novas leis, princípios organizadores que não podem ser previstos a partir do método reducionista. Por exemplo, se o neurônio é o "átomo" do cérebro, é impossível deduzir o funcionamento do cérebro a partir do funcionamento de um ou alguns neurônios. É em seu comportamento coletivo que os neurônios geram o que chamamos de pensamento. A busca por esses princípios organizativos é a "via do meio", ainda em sua infância, mas com um futuro muito promissor.

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