domingo, 11 de julho de 2004

Depois de amanhã

Esse deveria ser o título, em português, do filme sobre mudança climática que em inglês se chama "The Day after Tomorrow". A fita já levou pancada de climatologistas do mundo inteiro, pela maneira facilitária com que trata de processos ultracomplexos da atmosfera, mas esta coluna vai se permitir com ela uma generosidade que não teve com a trilogia "Matrix", por exemplo.

Apesar de todas as barbaridades científicas do enredo, é bom avisar, logo de cara, que o filme é apreciável. Vá lá, é de doer o entrecho do pai ausente, depois arrependido, que parte em busca do filho ilhado numa Manhattan soterrada em neve e gelo, mas as imagens...
Com tanta mobília para queimar na Biblioteca Pública de Nova York, a fogueira de livros permanece uma estupidez, também, mas a visão de centenas de milhares de refugiados norte-americanos cruzando o rio Grande e invadindo ilegalmente o México permite esquecê-la rápido.

Mesmo o artifício de fantasiar uma coleção de vórtices gigantescos sobre o hemisfério Norte para explicar a glaciação em cinco minutos aparece como licença cinematográfica aceitável. Mais, ainda, o cargueiro que desliza silencioso e fantasmagórico diante da biblioteca.
De um ponto de vista político atual, é de dar um prazer quase perverso assistir -ainda que só no escuro do cinema- a um presidente norte-americano desculpar-se em cadeia de TV por não ter dado crédito, no devido tempo, a cientistas alarmados com a possibilidade de uma mudança súbita no clima da Terra. E isso em solo estrangeiro -mexicano, para piorar-, agradecendo a generosidade de países que costumava chamar de Terceiro Mundo.

A onda gigantesca que se aproxima da Estátua da Liberdade também é de arrepiar -assim como o ícone nova-iorquino coberto de pingentes de gelo. Idem para a reciclagem da cena da fenda oculta sob a camada de neve, um clássico dos filmes sobre geleiras, que ao se abrir revela o imenso vazio de um shopping center. Cinema é isso, imagens para não esquecer.

Por que não mobilizá-las, então, na propagação de consensos científicos que o governo mais poderoso do planeta se recusa a reconhecer?

Há anos o Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática (IPCC, como é conhecido em inglês o grupo de cientistas investido pela ONU) afirma que não há mais dúvidas quanto ao efeito da espécie humana sobre o clima. Veículos, indústrias e usinas termelétricas emitem compostos de carbono que agravam o efeito estufa, retendo mais radiação solar na atmosfera, aquecendo-a além da conta. O IPCC projeta que tal acumulação de gases possa causar um acréscimo de pelo menos 1C até o ano 2100.

Nem por isso George W. Bush e seus amigos da indústria do petróleo dão o braço a torcer. Escolhem estudos e cientistas que se especializaram em levantar dúvidas sobre tais projeções, uma vez que elas são coalhadas de incertezas (como reconhece o próprio IPCC). Constituem uma minoria entre climatologistas, mas -o que fazer?- os americanos simplórios gostam desses heróis quixotescos, que lutam contra tudo e contra todos para afirmar a própria convicção.

Quixote por Quixote, é preferível ver Dennis Quaid espinafrando o presidente dos EUA, numa fita ligeiramente implausível, do que aturar Bush, na vida real, dando uma banana para o resto do mundo.

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