domingo, 19 de setembro de 2004

O Universo e a gota d'água

Marcelo Gleiser
especial para a Folha

Outro dia, uma leitora amiga minha me perguntou por que esta coluna se chamava "Micro/Macro". "Nomezinho estranho esse, não?" disse ela, sorrindo. Após repreendê-la, afirmando (também sorrindo) que, se ela tivesse lido todos os textos, saberia responder à própria pergunta, me dei conta de que o nome merece mesmo uma explicação.

Meu pai costumava dizer que existe um universo em uma gota d'água. "O macro cabe no micro" era uma de suas frases prediletas. Na época, não dava muita bola para o que ele dizia. Hoje, já penso diferente e sei que não só o macro cabe no micro como o Universo é uma gota. Talvez uma gota em um infinito oceano de universos.

A partir dos anos 1970, duas áreas da física aparentemente muito diferentes começaram a se aproximar. Antes, uma relação entre as duas parecia ser impossível. No início a coisa foi meio tímida -algumas idéias arrojadas aqui e ali testando uma possível união. Hoje, uma não pode viver sem a outra. As áreas são a cosmologia, que estuda o Universo como um todo, sua origem e evolução, a área mais "macro" da ciência, e a física das partículas elementares, que estuda as propriedades das menores entidades que existem, ou seja, a área mais "micro" da ciência. Tudo o que sabemos sobre a natureza fica entre esses dois extremos. O que não sabemos também.
De onde veio essa união? Em 1965, o modelo do Big Bang foi confirmado por meio de observações realizadas por dois astrofísicos dos Laboratórios Bell que testavam transmissões de microondas para comunicações via satélite. Eles descobriram um ruído em sua antena que vinha de todas as direções do céu. Aflitos, conversaram com outros astrofísicos que explicaram que o "ruído" era radiação eletromagnética que vagava pelo Universo desde a sua infância. Usando dados atuais, percebeu-se que esse ruído foi produzido quando o Universo tinha em torno de 400 mil anos de idade.

Hoje, a idade do Universo é de cerca de 14 bilhões de anos. A conseqüência é imediata: se o Universo tem essa radiação toda e ela agora é muito fria (-270C), no passado, quando o Universo era mais jovem, ela era bem mais quente: quanto mais para trás no tempo, mais quente. E, como está em expansão desde seus primórdios, menor também.

E a matéria toda que existe? Quanto mais quente o Universo, mais difícil é para a matéria se manter coesa. Como exemplo, voltemos à gota do meu pai. Muito frio, ela congela. Muito quente, ela evapora. E se o calor aumenta? As ligações entre o átomo de oxigênio e os dois de hidrogênio se rompem e temos átomos livres. Mais calor, e os elétrons não conseguem continuar unidos aos prótons: os átomos se dissociam (ionizam) e não existe mais água. No Universo, isso ocorreu aos 400 mil anos. Antes disso, o calor era ainda maior. Com um segundo de vida, o Universo era tão quente que os prótons e nêutrons nos núcleos atômicos se separaram. A um centésimo de milésimo de segundo, prótons e nêutrons não existiam: eles se dissociam em quarks, as partículas das quais são feitos. A gota de meu pai virou uma sopa de quarks e elétrons, as partículas elementares da matéria. O macro virou micro.

Ainda nem chegamos ao tempo zero e o Universo virou uma sopa de partículas e radiação e continua encolhendo. Quando chegamos a uma fração ridiculamente pequena de um segundo (10-44 s, para os interessados), o Universo inteiro é do tamanho de uma gota d'água. E a temperatura é tão alta que nem sabemos que tipos de partícula existiam. Estamos no limite: macro e micro entrelaçados. E agora? Da física de partículas, uma inspiração: talvez nosso Universo seja mesmo uma gota, flutuando em um metaoceano, o multiverso feito de todos os universos. Meu pai adoraria saber disso. "Tá vendo filho? O próprio macrocosmo não passa de um microcosmo."

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