domingo, 7 de novembro de 2004

A criatividade do caos

Marcelo Gleiser
colunista da Folha

Em 2002, a pesquisadora americana Susan Lindquist, do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, publicou um artigo surpreendente na revista "Nature". Usando a mosca da fruta, ela demonstrou que a proteína Hsp90 tem um papel essencial na evolução genética das espécies. Modificando sua estrutura, Lindquist criou monstros horrendos: moscas com múltiplos olhos, pernas saindo da barriga, corpos distorcidos etc. Ela concluiu que isso ocorre devido à capacidade da Hsp90 de regular mutações aleatórias nos genes das moscas. A proteína age como uma espécie de seletor de mutações, mantendo a homogeneidade da espécie. Mexer com ela é como abrir a caixa de Pandora, deixando escapar todos os males, criando monstros genéticos.
O experimento mostra duas coisas. Primeiro, que a vida usa controles moleculares para se preservar; sem o policiamento da Hsp90, a mosca da fruta teria o seu futuro arruinado. Segundo, que a existência de flutuações aleatórias é parte fundamental do mecanismo da vida. Sem esse caos molecular a vida seria incapaz de se reinventar. E a única razão para o sucesso da vida na Terra é justamente a sua maleabilidade, a sua capacidade inerente de se redefinir quando necessário.
Revisitando a história da vida na Terra, fica claro que as condições ambientais mudaram constantemente. Idades do gelo, outras mais quentes, erupções vulcânicas violentas a ponto de mudar a composição química da atmosfera, impactos com asteróides e cometas, enfim, desastres e cataclismos de caráter global que ameaçaram todas as formas de vida. No entanto, a vida não só perseverou como mostrou tremenda versatilidade. As novas pesquisas dos mecanismos moleculares da vida mostram que essa versatilidade é produto de um delicado equilíbrio entre o caos, a desordem das flutuações atômicas e filtros e sistemas de controle como a Hsp90.
O interessante é que, de tanto em tanto, esses filtros moleculares permitem que mutações escapem, proporcionando uma variabilidade essencial à preservação da espécie. Quando o ambiente muda, por exemplo, um asteróide colide com a Terra, se mutações não ocorrerem de modo a facilitar a adaptação da espécie às novas condições, ela será extinta em poucas gerações. Ou seja, o fato de o filtro não ser "perfeito", deixando uma ou outra mutação escapar, garante a preservação da espécie. Nossa existência depende de imperfeições.
Claro, o sistema parece mais com um jogo de roleta do que com um mecanismo pré-desenhado. Grande parte das mutações é nociva à espécie; lembre-se das moscas com pernas saindo pela barriga. Mas, de vez em quando, uma mutação ajudará na adaptação. Caso não existissem essas flutuações, a vida não teria a menor chance. O equilíbrio aleatório entre ordem e desordem determina a sua adaptabilidade em um mundo em constante transição.
Essa aleatoriedade genética foi demonstrada também em bactérias fluorescentes. Em 2002, o biólogo Michael Elowitz mostrou que a leitura do DNA das bactérias não era perfeita, mas sofria flutuações que ele chamou de "ruído intrínseco". Misturando o DNA das bactérias com o de vaga-lumes, Elowitz criou bactérias fluorescentes, misturando genes responsáveis pelas cores vermelha e verde. Ele esperava que a maioria brilhasse em um tom amarelado, combinando o verde e o vermelho de forma ordenada. Mas, para sua surpresa, surgiram bactérias de inúmeras cores, do turquesa ao laranja. Novamente, o ruído aqui era de natureza molecular.
A desordem molecular tem papel crucial na variabilidade da vida. Sem ela estaríamos fadados a uma mesmice padronizada, um mundo estagnado. A vida é essencialmente resultado de criatividade anárquica.

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