domingo, 14 de novembro de 2004

Uma lua titânica

Marcelo Gleiser
colunista da Folha

Na mitologia grega, os titãs eram os senhores supremos do Universo, seres gigantescos de grandes poderes que foram destronados por Zeus, ou, para os romanos, por Júpiter. E Titã, a maior lua de Saturno, é a segunda maior de todo o Sistema Solar, perdendo apenas para Ganimedes, apropriadamente a maior lua de Júpiter. Mas a cor avermelhada de Titã, que pode ser vista com poderosos telescópios terrestres, apontava para a existência de algo que Ganimedes não tem: uma atmosfera. Na década de 1970, cientistas da Nasa planejaram a missão Voyager-1 para que a sonda passasse perto da misteriosa lua. E os resultados obtidos em 1980 despertaram ainda mais a curiosidade dos cientistas. Titã merecia uma nova visita, com mais calma.

A missão Cassini foi desenhada especialmente para sobrevoar Titã várias vezes. Para ser preciso, 45 vezes, seus instrumentos colhendo dados a cada passagem, incluindo imagens por radar (ondas de rádio que vão até a superfície e voltam) e câmeras de infravermelho e luz visível. Desde o início, a missão provocou polêmica: seus reatores usam plutônio e temia-se que um acidente durante o lançamento pudesse poluir a atmosfera terrestre com o material altamente radioativo. Mas o acidente não ocorreu e, no dia 15 de outubro de 1997, a Cassini iniciou sua viagem de sete anos até Titã.

Vale a pena uma pausa para apreciar o feito tecnológico que é uma missão dessas. Sete anos no espaço, sua trajetória precisamente calculada para passar perto de Vênus duas vezes, da Terra uma vez (em 1999) e finalmente de Júpiter, ganhando velocidade a cada aproximação até ser catapultada ao seu destino, Cassini é um sofisticado robô capaz de operar sozinho e de enviar os dados coletados a antenas receptoras na Terra. Para completar, a Cassini transporta a tiracolo uma outra sonda chamada Huygens -homenagem ao holandês que descobriu Titã em 1655. A sonda Huygens, construída pela Agência Espacial Européia, cairá em janeiro de pára-quedas na atmosfera de Titã, fazendo análises e medidas de sua composição química e, se sobreviver ao impacto, de seu solo também. Imagine o que Huygens diria se soubesse que uma máquina humana com o seu nome viajou mais de 1 milhão de quilômetros até a lua que ele descobriu há 350 anos. Pergunto-me se podemos imaginar algo mais mágico e fascinante do que isso.

Os dados da Voyager-1 sugeriram não só que Titã tem um atmosfera mais densa do que a da Terra, mas que ela é rica em nitrogênio (em torno de 90%), argônio (em torno de 10%) e, mais interessante ainda, metano, uma substância cuja molécula é composta de carbono e hidrogênio. Numa lua maior do que o planeta Mercúrio, a detecção de compostos de carbono e hidrogênio (hidrocarbonetos) é sempre motivo de grande especulação. Lembre-se de que carbono é o elemento químico essencial para a vida. Será que Titã, com sua temperatura frígida de 180C, tem lagos e oceanos ricos em hidrocarbonetos, reproduzindo a sopa prebiótica que existiu na Terra há bilhões de anos? Finalmente, após 24 anos, essas perguntas serão respondidas.

Os primeiros dados enviados pela Cassini mostram que ao menos a pequena região estudada na passagem inicial é "coberta por materiais orgânicos", disse Ralph Lorenz, da Universidade do Arizona. As suspeitas originais parecem estar corretas. Cientistas da Nasa afirmam que as imagens obtidas por radar sugerem mesmo a existência de lagos compostos por etano ou metano, os dois hidrocarbonetos mais simples. Saliências sinuosas espalham-se pela imagem como tentáculos, sugerindo que a superfície alterne partes sólidas e líquidas, ou mesmo que pedaços de hidrocarbonetos congelados flutuem em mares de metano. As condições atmosféricas sugerem a existência de precipitações líquidas, chuvas de metano. Um cientista chegou a afirmar que as protuberâncias vistas nas imagens aparentam ondas em lagos de hidrocarbonetos. Durante os próximos quatro anos, a Cassini passará mais 44 vezes por Titã, revelando uma realidade muito mais estranha do que a imaginação.

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