domingo, 2 de novembro de 2003

Cosmitologia

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É bom começar explicando que o título é esse mesmo, e não "Cosmetologia", como alguns poderiam imaginar. Sei que misturar ciência e mitologia deve ser feito com cuidado, e um ensaio curto não é o lugar mais indicado para tal. De todo modo, meu intuito é provocar a reflexão neste domingo dedicado ao passado. Algumas das perguntas feitas hoje por cosmólogos, aqueles físicos que estudam a origem e as propriedades do Universo, são bem mais antigas do que a própria ciência. A mais importante, a que poderia ser chamada de "mãe de todas as perguntas", é, claro, a origem de tudo: como surgiu o mundo?

Todas as culturas tentaram, de algum modo, responder a esse grande mistério. As respostas, chamadas de mitos de criação, são de uma riqueza impressionante, narrativas que tentam traduzir como o absoluto virou relativo, como o uno virou muitos. Por exemplo, para os maoris da Nova Zelândia, tudo veio do nada absoluto, sem a intervenção de uma divindade. O cosmo apareceu espontaneamente, uma flutuação surgida do vazio.

Um mito taoísta diz que no início existia o caos e que do caos surgiu a ordem, e da ordem condensou-se a terra, como uma gota d'água nascendo de uma nuvem carregada de umidade. Já a narrativa do Antigo Testamento descreve a criação como resultado da vontade divina: "Deus disse "Faça-se a luz" ".

Um estudo da cosmologia do século 20 mostra que algumas das idéias que apareceram em mitos de criação reaparecem sob o jargão científico. Não, o Big Bang não tem a ver com o Gênese: a luz descrita na Bíblia não é a explosão do evento que marcou o início da história cósmica. O Big Bang não foi uma explosão como é comum imaginar, uma bomba que explode e espalha detritos ao redor. Mais ainda, uma bomba pressupõe alguém para detoná-la, o que certamente não é o caso com modelos cosmológicos.

O ponto de encontro entre as teorias modernas e os mitos é o pressuposto de que a diversidade que observamos na natureza tem sua origem em um único princípio. No caso dos mitos, o princípio é uma realidade absoluta de onde surge tudo, seja ela Deus, os deuses, o nada ou o caos primordial. Já as teorias modernas sustentam que, no início, as quatro forças fundamentais que regem o cosmo (gravidade, eletromagnetismo e forças nucleares forte e fraca) estavam unificadas numa única, o campo unificado.

O que se sabe sobre esse campo unificado? Não muito. Einstein passou décadas tentando desvendar suas propriedades. Centenas de físicos teóricos dedicam suas carreiras atrás do mesmo objetivo.

Existem indicações experimentais de que, de fato, as forças começam a se comportar de modo semelhante em altas energias. Por exemplo, as forças eletromagnética e nuclear fraca funcionam como uma só nas energias obtidas em colisores de partículas, máquinas que aceleram partículas a velocidades próximas à da luz. Mas essas indicações estão longe de ser uma confirmação de que o campo unificado existe. Será que a física teórica também está fabricando um mito?

O vencedor do Prêmio Nobel Steven Weinberg, um dos físicos teóricos mais influentes do mundo, famoso por sua posição ultra-reducionista, publicou um livro intitulado "Sonhos de uma Teoria Final". Veja bem, sonhos. Nele, ao se referir à busca por uma teoria unificada, Weinberg escreve: "Nós temos de supor que teremos sucesso. Caso contrário, certamente falharemos".
É um ponto fundamental. A teoria do campo unificado poderá vir um dia a ser descoberta. Ou ela pode ser um Cálice do Graal, mitologia. Nesse caso, seria como uma montanha mágica, cujos contornos podemos ver na distância, encobertos por brumas. Para chegar até ela, temos de desbravar território desconhecido.

A exploração desse território é que gera a nova ciência. Isso ocorre mesmo se montanha alguma existir no final do caminho, mesmo que ela seja uma miragem. O poder de um mito não está na sua veracidade, mas na sua credibilidade. Ele sustenta a criatividade científica, alimentando a coragem de nos aventurarmos por terras inteiramente desconhecidas.

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