domingo, 14 de setembro de 2003

Criação ou descoberta?

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Fala-se muito no grande abismo entre ciência e arte, a primeira lógica, objetiva, enquanto a segunda é intuitiva, subjetiva. O poeta inglês John Keats acusou seu conterrâneo Isaac Newton de ter "desfiado o arco-íris" com suas explicações físicas sobre a difração da luz. Ou seja, explicar racionalmente algo de belo que existe no mundo é insultar a sua existência, tirar a sua poesia.

É o velho problema das "Duas Culturas", que o escritor e físico inglês C.P. Snow, em um pronunciamento de 1959, acusou de estar levando à desintegração sociocultural, à fossilização da criatividade moderna. Segundo ele, apenas a reintegração das duas culturas levará a humanidade a novas respostas para alguns de seus maiores desafios.

Um leitor desta coluna me escreveu recentemente pedindo que eu esclarecesse a distinção entre descoberta e criação. Mais especificamente, a diferença entre as duas dentro da ciência.
Nós criamos ou descobrimos a ciência? Será que as nossas teorias e os nossos teoremas estão codificados de algum modo na natureza e tudo o que faz um cientista é "des-cobri-los", levantar a coberta que os esconde, revelando seu significado? Ou será que os criamos, usando nossa intuição, observação e lógica?

Complicada, essa pergunta. E profundamente ligada à questão das duas culturas. Se fosse prudente, parava por aqui, citando a minha sábia avó, que dizia que "criar é coisa de Deus, descobrir é coisa de gente". Mas por que não tentar inverter isso, fazer do homem criador e não só criatura? Afinal, descobrir é emocionante, mas bem mais passivo do que criar.

Comecemos pelo "Aurélio". "Criar" significa dar existência a; dar origem a; formar; imaginar. "Descobrir" significa tirar cobertura que ocultava, deixando à vista; encontrar pela primeira vez; revelar etc. À primeira vista, a distinção entre as duas culturas está nessas definições.
O artista é o criador, ele ou ela dá existência a algo que não existia, enquanto o cientista é o descobridor, aquele que revela o significado oculto das coisas, sem criá-las. Beethoven criou a sua Nona Sinfonia, certo? Ela não existia antes de ele existir. Já Newton descobriu as três leis do movimento -elas estavam lá, escondidas na natureza, esperando para serem reveladas pela mente certa.

Muita gente pode se contentar com essa explicação e dar o caso por encerrado. Mas eu não. Para mim, a ciência é uma criação, tão criação quanto uma obra de arte. O fato de arte e ciência obedecerem a critérios de validade diferentes, de a ciência ter uma aceitação baseada no método científico, que provê meios para que teorias sejam testadas frente a observações, não muda a minha opinião. Ciência é criação do homem, fruto de nossos cérebros e de nosso modo de ver o mundo. Para entender isso, basta examinarmos um exemplo de sua história.
Aristóteles dizia que a gravidade vinha da tendência dos corpos de voltarem ao seu lugar de origem: uma pedra caía no chão porque foi de lá que ela tinha vindo. Newton, no século 17, propôs que a gravidade era uma força entre quaisquer corpos materiais, com intensidade proporcional ao produto de suas massas e inversamente proporcional ao quadrado de sua distância. Einstein, em 1916, disse que a gravidade vem da curvatura do espaço em torno de um corpo maciço, reduzindo-a a um efeito geométrico.

Todas essas teorias foram propostas para explicar os mesmos fenômenos. Imagino que Einstein não terá a última palavra: a gravidade será explicada de formas diferentes, na medida em que o conhecimento científico avançar. Junto com novas tecnologias e novos conceitos surgem novas representações do mundo natural. Pode-se descobrir um novo fenômeno, mas sua explicação é criada.

Pensemos agora em uma outra história, a da representação gráfica da crucificação de Cristo. No século 13 era uma coisa, na Renascença, outra, no século 18, ainda outra, e no 21, outra completamente diferente. O evento é o mesmo, mas a sua representação gráfica muda, porque muda a perspectiva artística. É perfeitamente razoável para um artista recriar a crucificação como um amálgama do seu subjetivismo e dos valores culturais da época em que vive. A visão artística está sempre em transformação.

A científica também está. Ciência é uma construção humana, criada para que possamos compreender o mundo em que vivemos. O que se descobre são novos modos de criar.

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