domingo, 27 de julho de 2003

Medo da ciência

.
O legendário Fausto, em busca de sucesso e vida eterna, barganhou sua alma com Mefistófeles. No final, como em todas as histórias em que o homem tenta ir além de seus limites mortais, as coisas acabam mal. Curioso que, segundo o "Aurélio", o adjetivo "fausto" signifique feliz, próspero. Talvez por um tempo, diria o pobre personagem, ardendo eternamente nas chamas do inferno.

Se a crença em barganhas sobrenaturais está em declínio (ou, pelo menos, deveria), a crença em barganhas naturais está em franca ascensão: o que Fausto tentou obter invocando o diabo, é, talvez, algo que a ciência irá nos dar, num futuro não tão longínquo. A questão é: qual será o preço e quem deverá pagá-lo?

Existem algumas áreas de pesquisa que podem acabar destruindo seus criadores e o resto da humanidade. Talvez o exemplo mais familiar seja o da energia atômica, capaz de gerar enormes quantidades de energia, mas também bombas e desastres ecológicos seríssimos, causados ou não por terroristas.

O leitor astuto percebeu que o título deste ensaio não é "medo de ciência" mas "medo da ciência". Aqui, o medo não é aquele tradicional, tipo "não pude ou quis aprender na escola, muito enrolado, o professor era um louco" etc. É o medo do que a ciência pode causar. É o caso dos enxertos genéticos, que não são a mesma coisa que clonagem. A idéia é interferir no genoma de um embrião ou até antes, selecionando este ou aquele gene como se escolhe canapé em festa.

Por exemplo, o pai, baixinho e careca, que sempre apanhou na escola, escolhe ter filho homem, de 1,90 metro, louro e forte feito um Hércules. Assim, o filhote, quando tiver uns 15 anos, vai poder dar uma surra nos coroas que batiam em seu pai quando criança. Quem sabe até a técnica será desenvolvida a tal ponto que tornará possível escolher os genes de seu filho por catálogo, direto na internet, ou em clínicas de engenharia de gente. Será o caso de se criar uma nova profissão, a de designers de humanos. A diferença essencial entre a engenharia de genes e a clonagem é que, na clonagem, os genes não só são dos pais ou de um doador, como são deixados intactos.

O livro recente do americano Bill Mckibben "Basta: Mantendo-se Humano em uma Era Engenhada", chama a atenção aos perigos dessa e de outras tecnologias emergentes. Segundo Mckibben, existe uma confusão em relação ao uso benéfico da engenharia de genes, como a cura de doenças graves, e a sua absoluta necessidade. Existe outra possibilidade, que evita o uso dos enxertos.

Por exemplo, se os pais são diagnosticados como portadores de genes que apresentam um risco de gerar crianças doentes, a solução não é alterar os genes, mas escolher, dentre vários embriões, aqueles que não têm os genes nocivos. Ou mesmo escolher entre óvulos e espermatozóides: o bebê, com futuro saudável garantido, pode então ser gerado na proveta. Com isso, pode-se evitar que uma criança venha ao mundo com seu futuro destruído, sem que seja necessário desenvolver técnicas de engenharia genética, com todas a suas consequências.
Caso contrário, alerta Mckibben, o preço será a nossa humanidade. Afinal, se for possível "engenheirar" os nossos descendentes, não haverá mais incertezas e inquietudes com relação às gerações futuras, surpresas e desapontamentos. Tudo será conforme o planejado, as crianças do jeito que os pais querem, robôs, frutos de suas fantasias e sonhos.

E o que essa geração irá criar de novo? Muito provavelmente, a destruição da geração de seus pais, que a roubou do acaso. E os que não podem pagar por essas escolhas? Serão uma sub-raça? Não vejo como interromper o progresso científico. Se é proibido aqui, será feito ali, se não oficialmente, clandestinamente. O homem será sempre ganancioso. Espero, apenas, que com conhecimento venha também sabedoria, o que, em geral, não ocorre. A menos que se descubra qual é o seu gene.

Nenhum comentário:

Postar um comentário