domingo, 10 de agosto de 2003

Ciência e Hollywood

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Não existe dúvida de que a maior parte do contato das pessoas com a ciência é por meio do cinema. Não de livros, jornais, revistas ou cursos (infelizmente, já que eu dou aulas de ciência e escrevo livros e artigos de divulgação científica), ou de museus e palestras, mas, principalmente, de Hollywood. Falo de centenas de milhões de pessoas, talvez bilhões.

A TV, claro, também é importante. Mas é possível argumentar que, em geral, uma série de ficção científica que faz sucesso na TV acaba, mais cedo ou mais tarde, virando filme. Veja os exemplos das séries "Jornada nas Estrelas", "Arquivo X" e "Perdidos no Espaço", entre muitos outros. Mais ainda, filmes já faziam "divulgação científica" muito antes de a TV existir.

Oitenta anos de ciência em Hollywood contribuíram para a criação de uma percepção pública que oscila entre o venerável e o assustador. A ciência cria e destrói. Novas tecnologias trazem sempre a dupla promessa do bem e do mal. Os filmes, em sua grande maioria, são representações dessa dualidade.

As imagens e idéias vistas nas telas vêm carregadas de significados morais, relacionados, em sua maior parte, a um punhado de mitos clássicos. O mais popular é o mito de Prometeu, o titã que, por ter roubado o fogo dos céus para o benefício da humanidade, foi condenado por Zeus a ter o seu fígado devorado durante o dia por uma águia, só para tê-lo regenerado à noite, em um ciclo que se repete por toda a eternidade.

Uma encarnação recente desse mito nas telas é o filme "Inteligência Artificial", de Steven Spielberg, no qual a humanidade se torna obsoleta graças à sua própria criação, robôs inteligentes e emotivos. Outra é a série "O Exterminador do Futuro", em que máquinas cada vez mais poderosas têm como missão o extermínio dos humanos (ainda bem que temos Arnold Schwarzenegger para nos salvar). Inúmeros filmes sobre apocalipses nucleares exploram o mesmo mito: se nós ousarmos muito com nossas invenções, se roubarmos o segredo dos deuses, seremos punidos, tornando-nos vítimas de nossa própria criação. A criatura destrói o criador.

No entanto, acusar Hollywood de deturpar a ciência apenas para fins lucrativos, usando a mistura de medo e fascínio que as pessoas têm do novo para induzi-las a ir ao cinema, é apenas parte da história, a mais óbvia. Existe também uma relação dual entre o imaginário e o real, que é inspiradora não só para os que vão ao cinema, mas para os que fazem ciência e vão ao cinema. Afinal, se a realidade muitas vezes é mais estranha do que a ficção, a ficção também pode motivar a nossa compreensão do real: o impulso criativo também se alimenta de sonhos. Se tudo que existisse fosse apenas dentro do plausível, a vida seria insuportavelmente chata e monótona. O desconhecido é tão necessário quanto o conhecido. E o que antes era apenas visão pode, um dia, se tornar realidade.

Essa relação simbiótica entre arte e ciência é extremamente frutífera. Um dos meus exemplos favoritos é o romance gótico "Frankenstein". Escrito em 1818 pela inglesa Mary Shelley, o livro inspirou-se na ciência de ponta da época, a descoberta (feita por Luigi Galvani e explorada por Alessandro Volta, o inventor da pilha) da "eletricidade animal" e de sua relação com o movimento muscular e com a vida. O clássico filme homônimo de James Whale, feito em 1931, não só usou toda a maquinaria eletromagnética que existia na época da filmagem como também a ciência que Mary Shelley jamais imaginaria possível: Henry Frankenstein (o nome do inventor louco na peça de Peggy Webling que serviu de base para o roteiro) foi "além do ultravioleta para descobrir o grande raio que trouxe a vida ao mundo".

E eis que, em 1953, o bioquímico Harold Urey e seu orientador, o vencedor do Prêmio Nobel de Química Stanley Miller, usaram descargas elétricas para sintetizar aminoácidos -componentes fundamentais de toda a matéria viva- a partir de compostos químicos simples como metano e amônia, que eles acreditavam estar presentes na atmosfera da Terra primitiva. Descargas elétricas novamente aparecem como o "raio que trouxe a vida ao mundo", dessa vez em um laboratório real. Pergunto-me se eles viram o filme de Whale e resolveram, mesmo que inconscientemente, pôr à prova a sua hipótese.

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