domingo, 20 de março de 2005

Reflexões sobre o tempo

MARCELO GLEISER
COLUNISTA DA FOLHA

Para alguns, os mais pragmáticos, o tempo não tem nada de misterioso: ele passa, envelhecemos e um dia morremos, ponto final. Já para outros, este colunista incluído, o tempo é um paradoxo, nosso grande amigo e inimigo.

Amigo por nos ensinar a ser pacientes com a impaciência dos outros, por nos fazer esquecer coisas que devem ser esquecidas e lembrar aquelas que devem ser lembradas. Inimigo por interromper vidas e relações, mudar coisas que não queremos que sejam mudadas, por nos fazer esquecer coisas que devem ser lembradas. Em termos psicológicos não temos dúvidas: como ninguém consegue se lembrar do futuro, o tempo anda sempre avante.


O paradoxo, aqui, é que toda criação depende apenas do passado


Mas a situação não é assim tão simples. Em arte, podemos inventar o futuro no presente, "visualizar" o que vai ser e tentar dar vida a essa visão. O paradoxo, aqui, é que toda criação depende apenas do passado: criamos o futuro reexperimentando e reintegrando o passado. Isso não significa que tudo já existe; significa apenas que existem infinitos modos de olhar para trás.
Em física, a direção do tempo não é obviamente para a frente. Na verdade, as leis da mecânica não distinguem entre ir avante ou para trás. Imagine, por exemplo, que alguém tenha filmado uma bola voando da direita para a esquerda. Se o filme for passado de trás para a frente, a bola voa da esquerda para direita: quem não esteve presente durante a gravação, não saberia em qual das duas situações o tempo vai do passado para o futuro. Dizemos que as leis da mecânica são reversíveis temporalmente.

Se a física dissesse que o tempo é reversível sempre, estaria em séria contradição com a realidade que vemos à nossa volta. (E em nós mesmos.) Basta observarmos o mundo para saber que o tempo vai para a frente: os dias passam, coisas mudam, pessoas e animais envelhecem, planetas giram em torno do Sol, o Sol envelhece, estrelas nascem e morrem, o próprio Universo cresce cada vez mais, definindo a direção cosmológica do tempo. Como então reconciliar estas observações com as leis básicas da física? A resposta se encontra na complexidade do sistema: uma bola é um sistema extremamente simples, sua trajetória para a direita ou para a esquerda é essencialmente a mesma. Mas um ovo virar omelete, por exemplo, é um processo irreversível: não vemos um omelete virar ovo. A diferença é que um ovo pode ser transformado em omelete através de inúmeros caminhos. Mas existem poucos modos de se transformar omeletes em ovos. (Assumindo que todos os ovos são essencialmente iguais...)

Como mostrou Ludwig Boltzmann, a questão depende de probabilidades: a probabilidade que todas as moléculas de um omelete se re-alinhem em um ovo é extremamente pequena, tão pequena que o fenômeno é altamente improvável, quase impossível. Quase mas não totalmente. Para tal, seriam necessárias incontáveis interações entre as moléculas de clara e gema seguindo instruções extremamente específicas: seria necessário um princípio organizador que pudesse contrariar o fato que desordem tende a aumentar, um princípio capaz de transformar desordem em ordem. Um destes princípios é justamente a arte; outro é a ciência. Ambas dão expressão à necessidade que temos de integrar nossa experiência do mundo com quem somos.

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