terça-feira, 14 de novembro de 2006

MARCELO GLEISER ESCREVE LIVRO PARA HUMANIZAR IMAGEM DO CIENTISTA

Físico e escritor fala ao G1 sobre seu primeiro romance e aborda temas polêmicos, como a relação entre ciência e religião


Salvador Nogueira, do G1, em São Paulo entre em contato

O físico Marcelo Gleiser
Já famoso por seus livros de divulgação científica, o físico Marcelo Gleiser resolveu investir num novo gênero literário. Sua última obra, “A Harmonia do Mundo”, é um romance. Baseada em fatos reais, a narrativa retrata a vida do astrônomo alemão Johannes Kepler, o homem que, em pleno século XVII, descobriu que os planetas não orbitavam circularmente ao redor do Sol, mas sim seguiam órbitas elípticas (ovais).

Embora seja um dos maiores gênios de seu tempo, Kepler foi ofuscado por outros gigantes, como o italiano Galileu Galilei e o inglês Isaac Newton. “Pois é, essa é uma outra razão pela qual eu escrevi o livro”, explica Gleiser. “A vida do Kepler é muito mais interessante que a vida do Galileu e a do Newton. Só que as pessoas não dão muita bola para ele, eu nunca entendi exatamente por quê.”

Apostando na possibilidade de trazer essa história à tona, o físico brasileiro optou pela ficção, para atingir o maior número de pessoas possível. “Eu achei que romancear a história de um grande cientista ia não só levar essa história para um número maior de pessoas, mas também humanizar o cientista, mostrar que ele não é só uma máquina de fazer cálculos, mas que é uma pessoa, com ambições, com tristezas, com sucessos, com fracassos e tal”, diz.

A tônica do livro é a relação entre o pupilo, Kepler, e o mestre, Michael Maestlin, o homem que apresentou as controversas idéias copernicanas ao então jovem estudante de astronomia. Gleiser diz que há muito dele mesmo nesses dois personagens.

Essa ambivalência literária traz a inevitável pergunta: o que dá mais prazer, escrever romances ou livros de divulgação científica? Gleiser responde isso e fala de outros temas, como a relação da ciência com a religião, na entrevista que concedeu ao G1. Leia abaixo o bate-papo ou, se preferir, ouça o áudio, clicando aqui.

G1 - Por que um romance, de onde saiu a idéia de escrever um romance?
Marcelo Gleiser - Quando eu comecei a ler sobre a vida do Kepler com mais seriedade, que foi mais ou menos em 1995, quando eu estava escrevendo meu primeiro livro, "A Dança do Universo", percebi que a história da vida dele era uma grande história. Não só pelos feitos científicos dele, mas pelas coisas que aconteceram com ele, o que estava acontecendo na Europa naquela hora, guerra entre os protestantes e católicos, caça às bruxas e tal. E eu me lembro, em 1997, jantando com a minha mulher, quando eu estava lançando o "Dança" aqui, falei: "sabe de uma coisa, a história do Kepler dava um grande romance e daria um grande filme também", e essa coisa ficou na minha cabeça. E comecei a pensar em como fazer isso, e depois que lancei "O Fim da Terra e do Céu", em 2001, eu requisitei uma bolsa da universidade para poder ir para a Europa pesquisar um pouco sobre a vida dele, ganhei a bolsa e daí fiz as pesquisas e resolvi escrever esse romance. Fora esse lado, eu também pensei o seguinte: as pessoas que lêem livros de divulgação científica representam uma faixa pequena da população, uma faixa que tem interesse em ciência, "ah, saiu um livro sobre, sei lá, cosmologia, sobre buracos negros, sobre mecânica quântica, vou comprar, vou comprar". Mas eu acho que o número de pessoas que lê romances é maior, em geral. E eu achei que romancear a história de um grande cientista ia não só levar essa história para um número maior de pessoas, que em princípio não se interessariam por ciência, mas também humanizar o cientista, mostrar que ele não é só uma máquina de fazer cálculos, mas que é uma pessoa, com ambições, com tristezas, com sucessos, com fracassos e tal. Eu acho isso muito importante para mudar um pouco a percepção que as pessoas têm da ciência, de que a ciência é uma coisa fria e distante da sociedade.

G1 - E ao longo do trabalho de escrever esse livro, você acabou criando uma identificação com o personagem? Quanto existe do Gleiser no Kepler do seu livro?
Gleiser - Eu acho que você cria uma identificação com os seus personagens. Na verdade, certamente tem muito de mim no Kepler. Tem umas coincidências interessantes. Por exemplo: minha mãe também me levou para ver um eclipse quando eu tinha seis anos de idade. Isso é uma coisa que eu conto no livro que a mãe do Kepler também fez. Ele também teve dois casamentos, o primeiro não muito bom, o segundo muito bom. Então, quer dizer, existem certas coincidências. E, claro, todo cientista tem mentores. Uma das coisas importantes nesse romance é a relação entre o mentor e o pupilo. Então, o Maestlin, que é uma personagem importantíssima, talvez até mais importante do que o Kepler na estrutura do romance, também veio da minha cabeça. Ele também é uma figura de um mentor, e aí representando um pouco o drama de um cara mais conservador que tem que enfrentar idéias modernas, a história do gênio, da mediocridade, da mortalidade, da imortalidade quando você constrói uma grande obra. Então eu coloquei todos esses meus pensamentos, esses questionamentos sobre a relação mentor-aluno, na cabeça do Maestlin. Então, o Kepler tem coisas minhas, mas o Maestlin também tem coisas minhas. Todos eles são uma espécie de voz que sai da mesma cabeça, que é a cabeça do autor.

G1 - Você apresenta o Kepler como um cientista que busca a inspiração no divino para desvendar a natureza. Você acha que essa é uma abordagem possível na ciência hoje? Buscar inspiração numa estrutura mais avançada, superior, que tem uma lógica subjacente?
Gleiser - Então, você já respondeu à pergunta. Se Deus é entendido como uma metáfora, não como... até existem, devo dizer, existem. Vinte por cento, se não me engano, dos cientistas são pessoas religiosas, que vão à sinagoga, vão à igreja, aos templos que forem. Ou mais até. E são pessoas que dizem que a ciência deles simplesmente comprova ou reforça a fé que eles têm em Deus e na construção da natureza. Então, nisso eles são muito parecidos com Kepler, Newton e Copérnico, menos com Galileu, mas também um pouco. Agora, eu acho que o outro lado, quer dizer, essa metáfora de que a natureza é um grande enigma, um grande mistério, e que através da razão a gente pode tentar compreender, se não todo, partes desse mistério. Isso daí é uma definição da ciência que é essencialmente espiritual. O Einstein mesmo era um cara que dizia isso. Então, existe sim, eu acho, em muitos cientistas, não vou dizer em todos, esse apego à natureza como sendo um grande desafio, um mistério que cabe a nós decifrar. E nesse sentido eu acho que isso cria uma relação espiritual entre o homem e a natureza em que a ciência é a ponte. Mas você tem também os caras que são totalmente ateus e que não querem saber de nada disso, que fazem as contas deles completamente sem uma preocupação, digamos, mais metafísica do trabalho deles. Depende um pouco da área em que você trabalha. Eu acho que o pessoal que mexe com questões relacionadas com origem, o big bang, origem da vida, são pessoas que têm um interesse maior na repercussão filosófica da ciência do que o pessoal que trabalha com propriedades de laser, cristais, semicondutores, supercondutividade e coisas do gênero.

G1 - Embora o Kepler seja reconhecido pelos cientistas como o grande inovador de sua era na astronomia por trocar os círculos por elipses, que foi uma atitude muito corajosa, ele não é muito conhecido do público em geral. Por que você acha que Galileu e Newton acabaram muito mais conhecidos que Kepler?
Gleiser - Pois é, essa é uma outra razão pela qual eu escrevi o livro. A vida do Kepler é muito mais interessante que a vida do Galileu e a do Newton. Só que, como você disse, as pessoas não dão muita bola para ele, eu nunca entendi exatamente por quê. Mas acho que a maneira de responder isso é a seguinte: o Newton foi um fenômeno que não tem outro na história da ciência. O cara criou toda uma visão de mundo, um modo de pensar e construir a realidade física, que é o modo que a gente vê o mundo, na verdade. A física dele é uma física que unificou a física dos céus e a física da terra. É por causa do Newton que a gente sabe das três leis de movimento, da lei da gravitação universal. Ele realmente transcendeu o cientista. O cara virou assim: "ó, é assim que o mundo funciona". Então ele virou um superstar mesmo. E a capacidade intelectual dele era tão absurda que o cara é meio-deus, meio-gente. Então ele é um dos poucos que em vida já era um cara superfamoso. Então ele ofusca os antecessores dele, inclusive... todo mundo. (Risos) Basicamente, se você tiver que resumir a história da ciência, até Newton o mundo era aristotélico, depois de Newton o mundo virou newtoniano. Hoje o mundo é einsteiniano, mas ninguém sabe, porque os efeitos do Einstein não são perceptíveis no nosso dia-a-dia.
O Galileu é famoso obviamente por ter se tornado um mártir da ciência. Por causa da relação dele com a igreja, a inquisição, e aquela coisa da busca pela verdade e a repressão da igreja, que é toda uma distorção do que realmente aconteceu. Mas o que fica na percepção social do Galileu é que ele lutou contra a igreja, sozinho, pela liberdade das idéias. E não é nada disso, mas ficou isso, então ele ficou famoso como mártir da ciência. O Kepler vivia na mesma época que o Galileu, e tinha as lutas dele, e depois tinha outra coisa: o jeito do Kepler escrever sobre ciência não era um jeito moderno de se escrever sobre ciência. O Galileu, com os diálogos e tal, era um jeito mais moderno de escrever sobre ciência. O Newton certamente era. Ele escrevia de forma matemática. Se você ler o livro do Newton, é tudo assim: proposição, teorema, demonstração, corolário, é como se fosse um tratado de matemática. Tanto que chama "Princípios Matemáticos da Filosofia Natural". Já o Kepler não. Ele misturava tudo, falava de misticismo, números, astrologia, os textos dele eram uma confusão danada. Ele era uma figura de transição entre o medieval e o moderno. E isso afastou muita gente das obras dele, inclusive o Galileu. E o Newton é que foi pescar nas obras do Kepler a importância dos resultados dele. Então, eu acho que o estilo do Kepler não era o científico moderno, e a própria personalidade dele também, e por isso ele ficou mais desconhecido das pessoas.

G1 - Como foi o trabalho de pesquisa? Você se divertiu pesquisando para esse livro, as viagens que você fez? Que tipo de relação você teve com o convívio do ambiente em que viveu Kepler?
Gleiser - Eu me diverti muito. Foi muito legal ter feito isso, quer dizer, eu basicamente fui da casa em que ele nasceu até onde ele morreu. Fui seguindo todos os passos dele, na Alemanha, na Áustria, em Praga. Foi sensacional. Até foi engraçado que, olha só que coincidência, no dia em que eu cheguei na cidade em que ele nasceu, em Weil, eu fui ao museu, a casa dele é um museu hoje, e a curadora lá do museu me recebeu, expliquei que eu era um professor nos Estados Unidos que estava escrevendo um livro sobre o Kepler. Ela falou, "ah, que ótimo! Hoje à noite vai ter uma festa na escola de ensino médio, então vem com a gente". Então ela pegou no hotel, era uma senhora, fui à tal da festa, não entendi nada, porque era em alemão e eu não sei alemão. Mas no meio da festa teve uma encenação de um diálogo entre o Tycho Brahe e o Kepler, os dois vestidos a caráter, porque o nome da escola era Gymnasium Johannes Kepler. Então foi muito legal, uma coincidência incrível no dia que eu chego lá ter isso. E a viagem foi muito boa. Eu tentei dentro do possível entrar na cabeça dele. Inclusive, no livro, o diário do Kepler é um diário que é fictício -- esse diário não existe. Foi uma maneira de eu criar um mecanismo para poder escrever na primeira pessoa, para poder descrever para as pessoas como o Kepler pensava, o processo criativo dele. E Praga é um lugar sensacional. Então, a viagem foi muito legal. E eu tive oportunidade em Tübingen, onde ele estudou, de sentar na mesa aparentemente onde ele sentava, pegar o livro-texto de astronomia que ele estudava, que era escrito pelo Maestlin. Então realmente eu tentei da melhor maneira possível recriar essa época e a maneira como as pessoas pensavam nessa época.

G1 - O livro deixa um mistério. A gente nunca sabe o que diz a carta do Kepler ao Maestlin. Você chegou a escrever essa carta ou era só um artifício para carregar o leitor até o final?
Gleiser - Era um artifício. E eu não escrevi a carta, mas eu pensei durante muitos meses sobre a carta. E eu resolvi não escrever, mas se você prestar atenção, nas últimas páginas, em que o Maestlin está pensando na carta, você vai ver que faz todo o sentido do mundo ele não ter aberto essa carta, porque a carta seria essencialmente uma carta em que o Kepler perdoaria o Maestlin, por tê-lo abandonado, por tê-lo deixado... uma carta de amor, vamos dizer assim, do pupilo ao mestre. E o Maestlin, depois disso tudo, ele não queria mais ser perdoado. Ele queria aceitar o fato de que ele abandonou e ele foi meio, vamos dizer assim, ele não queria que o Kepler perdoasse, ele queria aceitar a culpa, ele se julgou, se condenou como culpado, e a morte dele no final do livro é uma redenção. Então, eu acho que ter escrito uma carta dizendo, "olha, meu querido mestre, eu entendo que você tenha me abandonado, mas eu sempre te amei etc. etc.", ia perder a força dramática do livro e de certa maneira ia fazer com que o livro ficasse muito mais água com açúcar do que a história real deles foi.

G1 - Foi mais divertido escrever romance ou livro de divulgação?
Gleiser - Ah, romance. Não sei se é mais divertido, mas é muito mais intenso. É uma relação emocional com a obra muito maior do que quando você escreve um livro de não-ficção. E, eu vou dizer para você, é uma coisa muito sedutora.

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