domingo, 2 de agosto de 1998

"Armageddon", palco da independência ou da morte

MARCELO GLEISER
especial para a Folha

Dia 4 de Julho é uma data especial nos EUA. É o Dia da Independência. O país inteiro se incha de patriotismo, bandeiras americanas adornam casas e jardins e as cores azul, vermelha e branca predominam nas festividades. Ao anoitecer, as pessoas se reúnem na praça central da cidade para assistir aos fogos de artifício decorando os céus com suas explosões multicoloridas e comoventes.

Recentemente, uma outra tradição passou a ser parte do Dia 4 de Julho: o lançamento de filmes cataclísmicos, de ameaça de destruição total da espécie humana e da Terra. Ano passado foi o lançamento de "Independence Day", com seres extraterrestres que tentam dominar o mundo, destruindo grandes cidades, pessoas morrendo por todo o lado como míseros insetos perante a absurda força de uma tecnologia de destruição que transforma nossas armas nucleares em meros "fogos de artifício".

Esse ano foi a vez do filme "Armageddon". O termo, que vem do Apocalipse, no Novo Testamento, indica o local do confronto entre as forças do bem e do mal no Juízo Final. Hollywood transpôs o apocalipse para a astrofísica, o Armageddon sendo o planeta inteiro, ameaçado de destruição pelo impacto com um asteróide "do tamanho do Texas". Segundo o diretor da Nasa (agência espacial dos EUA), "esse asteróide é o que chamamos de "destruidor global'. Nem mesmo bactérias sobreviveriam ao impacto e à era glacial que se seguiria".
O filme é (no mínimo) o terceiro de uma linha sobre o perigo do impacto com um asteróide. Lembro-me de pelo menos dois outros, "Asteróide" ("Asteroid", EUA, 1997) e o recente "Impacto Profundo" ("Deep Impact", EUA, 1998). Nesses filmes, heróis americanos (claro!) salvam o mundo e restauram a paz e a possibilidade de sermos livres para continuarmos a celebrar o Dia da Independência com paradas e fogos de artifício.

O filme "Armageddon" é carregado de simbolismo religioso e social. Os heróis que salvam o mundo (acho que não estou estragando a curiosidade do leitor que irá assistir ao filme. Claro que o mundo é salvo no final!) são profissionais especializados em prospecção de petróleo, capazes de cavar buracos em qualquer terreno. Em uma missão semidesesperada (como o ritmo absurdamente histérico do filme), eles são transportados em espaçonaves que se parecem com anjos para implantar um explosivo nuclear dentro do asteróide, um monstro metálico, negro e austero, um pesadelo visual digno da região mais inóspita do inferno. A ameaça dos asteróides é real. Mas não é a única.

Enquanto Hollywood nos faz olhar para os céus em busca de novos inimigos, algo de aterrorizador está acontecendo aqui na Terra mesmo: as mudanças climáticas devido à deposição absurdamente elevada de gases poluentes na nossa atmosfera.

Cientistas do mundo inteiro vêm alertando as autoridades políticas dos perigos dessas alterações climáticas: chuvas torrenciais, enchentes e secas devastadoras seguidas de incêndios, exatamente como os que estão acontecendo agora na Flórida. Invernos quentes (como o do ano passado no Hemisfério Norte) e verões chuvosos arruinarão a produção agrícola, e o degelo das calotas polares irá elevar o nível dos oceanos, causando sérios danos às comunidades de beira-mar.

Oponentes de modelos do efeito estufa citam flutuações estatísticas como a causa desses incidentes "isolados". Mas os incidentes climáticos recentes, talvez até o El Niño, não são incidentes isolados. São manifestações de um desequilíbrio climático potencialmente irreversível.

Está na hora de tomarmos conta da nossa casa, de nos defender não dos inimigos que vêm do espaço, mas dos que não medem as consequências de seus atos ou de sua ganância. Caso contrário, seremos nós os causadores do "Armageddon". E, desse, nem mesmo os heróis de Hollywood poderão nos salvar.

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