sexta-feira, 21 de agosto de 1998

Uma nova ciência para um novo milênio

MARCELO GLEISER
especial para a Folha

Se existe algo que nos impressiona ao refletirmos sobre o mundo que nos cerca é sua diversidade: o vivo e o não-vivo, animais e pedras, árvores e nuvens, se desdobram em incontáveis formas, expressões de uma criatividade que nos emociona e inspira

Nós também somos produto dessa criatividade. Ao que tudo indica (pelo menos em nossa vizinhança solar), somos a única espécie capaz refletir sobre si própria e o ambiente que a cerca.
É por meio da ciência que procuramos organizar o que aprendemos sobre a natureza, buscando sempre explicações simples e concretas dos fenômenos que observamos.

De certa forma, podemos medir o sucesso de uma teoria científica pelo seu poder de explicação. Quanto mais completa ela for, maior o número de fenômenos que ela poderá explicar, usando o menor número possível de princípios ou leis.

Historicamente, é na física que encontramos o modelo fundamental para a estruturação das teorias científicas. Durante o século 17, Galileu Galilei e Isaac Newton desenvolveram a mecânica, que estuda o movimento de corpos materiais no espaço. Em seu magnífico livro "Princípios Matemáticos da Filosofia Natural", publicado em 1687, Newton estruturou toda a mecânica a partir de apenas três leis básicas, as famosas "leis do movimento".

Qualquer movimento que observamos na natureza, seja ele a órbita de um cometa em torno do Sol, a queda de uma gota de chuva ou o movimento de um ciclista em sua bicicleta, pode ser explicado aplicando-se uma ou mais leis de movimento (a mecânica newtoniana falha na descrição de movimentos muito rápidos, com velocidade comparáveis à da luz, ou na descrição de movimentos na escala atômica. Mas nossa vida diária é certamente newtoniana).

Para atingir esse enorme poder descritivo com apenas algumas leis, Newton reduziu o mundo a uma coleção de pontos materiais (como bolas de sinuca) agindo sob a ação de forças. Essa é uma descrição reducionista, uma estratégia amplamente adotada em todas as disciplinas científicas: dividir e simplificar ao máximo um sistema complicado, facilitando assim a descrição de seu comportamento.

O sucesso da descrição newtoniana do mundo foi tão imenso que o reducionismo tornou-se a pedra filosofal da ciência. E, sem dúvida, quando aplicado a outras disciplinas, o reducionismo também foi muito bem-sucedido. Em química, falamos de átomos e moléculas; em biologia, falamos de células e genes; e, em certos ramos da psicologia, falamos de categorias de comportamento ou da quantificação das várias formas de expressão, verbais e corporais.
Sem dúvida, nosso século será lembrado como o século de glória do reducionismo. As nossas vidas hoje são produto de inúmeros avanços em ciência e tecnologia, cujo sucesso é consequência direta da aplicação do reducionismo. Mas nem tudo é um mar de rosas, e esses avanços trazem seríssimos efeitos colaterais, como o poder destrutivo de nossas armas, a poluição desenfreada do meio ambiente, os perigos de manipulação da opinião pública pela exploração dos meios de comunicação. Como dizia o Buda, "onde existe luz, existe sombra".

Os tempos estão mudando; novas direções surgem em ciência, apontando para o oposto do reducionismo: o uso de técnicas globais na descrição de sistemas. Não dividir para entender, mas tratar o comportamento do todo como um todo; o todo é maior do que a soma das partes.
O cérebro não é o produto da soma de seus neurônios, a emergência da vida é um fenômeno coletivo, nosso planeta e todos os seus habitantes devem ser tratados como uma unidade, em que ações locais podem ter efeitos globais. Uma nova ciência para um novo milênio, onde o reducionismo e o "holismo" se complementarão em nossa descrição do mundo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário