domingo, 16 de agosto de 1998

Miragens planetárias e fantasias sem base científica

MARCELO GLEISER
especial para a Folha

Às vezes, nossos sentidos podem nos iludir, "criando" imagens ou sons que simplesmente não existem. Quantas vezes nos assustamos com o movimento inesperado de uma sombra projetada contra a parede de nosso quarto, ou com um ruído estranho que não sabemos de onde veio. Quantos "fantasmas" não enfrentei, quando criança, nas trevas de meu quarto...

Aliados a limitações tecnológicas, nossos sentidos também podem criar ilusões e miragens. Vale a pena contar a história dos famosos "Canais Marcianos", que gerou, e de certa forma ainda gera, um enorme sensacionalismo em torno da possibilidade de vida inteligente em Marte.
Em 1877, aproveitando a aproximação de Marte durante um período de ótima visibilidade, o astrônomo italiano Giovanni Schiaparelli (1835-1910) observou certos detalhes do relevo marciano que ele descreveu usando a palavra italiana "canali". Mesmo que Schiaparelli estivesse apenas se referindo a longas depressões ou sulcos na superfície de Marte, certas pessoas acreditaram que o astrônomo italiano houvesse descoberto canais cruzando a superfície do planeta em padrões extremamente regulares.

Rapidamente os canais passaram a ser artificiais, cavados por uma antiga e sábia civilização para trazer água dos pólos para as cidades das áreas equatoriais, que estavam sendo castigadas pela seca. Centenas deles foram "observados" e batizados, mesmo recusando-se a aparecer em fotografias. Aparentemente, técnicas fotográficas, usando longa exposição, perdiam as sutis imagens dos canais devido a flutuações térmicas na atmosfera que comprometiam a visibilidade.

Vários astrônomos de excelente reputação acreditaram na história dos canais. Dentre eles, o milionário e astrônomo amador Percival Lowell (1855-1916) ficou fascinado com a possibilidade de vida inteligente em Marte. Em 1895, Lowell publicou um livro expondo suas idéias com grande convicção e autoridade. Seu entusiasmo foi suficiente para ele fundar um observatório em Flagstaff, no Arizona (EUA), inicialmente dedicado a observações da superfície de Marte. Não foi coincidência o livro "A Guerra dos Mundos", de 1898, de H. G. Wells, sobre uma invasão de marcianos.

Ainda mais dramático foi o programa de rádio produzido por Orson Welles em 1938, alertando os habitantes de Nova Jersey, nos EUA, para a invasão dos marcianos. As transmissões, na forma de boletins de notícias, causaram verdadeiro pânico na população local. Ou seja, as pessoas aceitaram passivamente a existência de uma civilização com tecnologia avançadíssima em Marte, com péssimas intenções com relação à Terra.

É importante analisar alguns dos ângulos dessa história, como o fato de que vários cientistas acreditaram em uma conjectura que não era muito convincente. Cientistas são seres humanos, e, às vezes, o desejo de acreditar em algo é grande o suficiente para afetar seu discernimento. A grande vantagem é que, na ciência, essa condição é geralmente temporária. As sondas Mariner e Viking provaram que os "canais marcianos" não existem. Os vales e antigos leitos de rio que existem são produtos da erosão da superfície marciana.

O que mais preocupa são os danos que a falta de informação científica pode causar. No caso de Marte, muita gente ainda crê que há vida inteligente no planeta mesmo após prova em contrário. Meios de comunicação, muitas vezes interessados apenas em lucros, exploram essa "vontade de acreditar" que todos temos, sem qualquer preocupação com as repercussões que isso possa causar. Uma das missões sociais mais importantes do cientista é divulgar para o público em geral as descobertas e métodos da ciência para evitar pânicos como o de 1938, ou mesmo manifestações de fanatismo religioso baseadas em pseudociência, como as que vêm causando tantos suicídios e mortes pelo mundo inteiro.

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