domingo, 25 de outubro de 1998

A busca da ciência pelas regras do xadrez cósmico

MARCELO GLEISER
especial para a Folha

Em 1789, o grande químico francês Antoine Laurent Lavoisier formulou sua famosa lei de conservação de matéria: "Nós devemos aceitar como um axioma incontestável que em todas as operações da natureza e da arte nada é criado; uma quantidade igual de matéria existe antes e depois do experimento". Tragicamente, Lavoisier foi decapitado aos 50 anos, por ter trabalhado como inspetor de impostos para o "ancien regime". Um apelo para salvar sua vida foi respondido com as infames palavras "La Republique n'a pas besoin de savants" (a República não precisa de cientistas).

A lei descoberta por Lavoisier expressa o caráter dinâmico da natureza, das transformações de elementos químicos entre si, de gases em líquidos, líquidos em sólidos ou, em nível subatômico, de partículas em outras partículas, em que a lei de conservação da massa é generalizada para a lei de conservação de energia e de momento, ou quantidade de movimento. O interessante é que uma lei que expressa as transformações na natureza é baseada em uma constante, no caso a quantidade total de massa.

Leis como essa são fundamentais para a descrição científica do mundo. De certa forma, podemos reduzir o trabalho do cientista, em particular do físico, em duas missões principais: primeiro, a busca por essas "leis de conservação", ou, mais ambiciosamente, leis naturais. Segundo, a aplicação dessas leis na descrição do maior número possível de sistemas encontrados no mundo, das partículas subatômicas aos aglomerados de galáxias ou ao Universo.

A propriedade mais importante dessas leis é sua universalidade. As leis da natureza são válidas em qualquer instante do tempo e em qualquer lugar do Universo (ou quase -talvez exceções existam no interior de buracos negros ou em situações muito exóticas). Elas fazem parte da linguagem universal da ciência, as regras com que explicamos a arquitetura e o funcionamento do mundo à nossa volta.

O físico norte-americano Richard Feynman ilustrou da seguinte forma essa busca pelas leis naturais: "Imagine que o mundo seja uma gigantesca partida de xadrez sendo disputada pelos deuses, e que nós fazemos parte da audiência. Não sabemos quais são as regras do jogo; podemos apenas observar o seu desenrolar. Em princípio, se observarmos por tempo suficiente, descobriremos algumas regras. As regras do jogo é o que chamamos de física fundamental".
Claro, a descoberta dessas regras e sua universalidade são alvo de constante verificação. Como podemos saber se a conservação de energia é válida em outros pontos do Universo, como a galáxia de Andrômeda, ou no interior do núcleo atômico? A resposta está na observação de fenômenos físicos nesses sistemas, que confirmem a validade de nossas leis.

Mas existem duas outras razões, fora seu absoluto sucesso até o momento, para nossa certeza de que essas leis naturais sejam o modo correto de se estudar o mundo: sua belíssima simplicidade e sua conexão com a simetria. A importância de uma determinada lei pode quase que ser medida pela sua simplicidade e pelo número de fenômenos que ela descreve; se duas leis descrevem adequadamente um determinado número de fenômenos, a mais simples é sempre a escolhida, um critério conhecido como "A Navalha de Occam", proposto em torno de 1320 pelo grande filósofo e teólogo inglês William de Occam. A relação entre leis de conservação e simetrias fica para uma outra coluna.

Mas qual é a origem dessas leis naturais? Por que o Universo funciona dessa forma, por meio de leis básicas e não de outra maneira? A ciência, pelo menos até o momento, não se propõe a explicar a origem de suas próprias leis, adotando uma postura descritiva: nós explicamos o mundo com essas leis, que são descobertas a partir de experimentos e observações. Se elas são ou não as regras do "xadrez divino", isso fica por conta de cada um.

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