domingo, 18 de outubro de 1998

A imaginação pré-socrática e a origem da ciência

MARCELO GLEISER
especial para a Folha

Aristóteles disse, inspirado por seu mestre Platão, que certas idéias tendem a reaparecer de tempos em tempos, que nós estamos fadados a redescobri-las devido ao seu incrível poder de sedução intelectual. O grande escritor argentino Jorge Luis Borges (1899-1986), em seu conto "O Imortal", explora justamente esse tema, o da criação do novo a partir da memória do velho. Criação passa a ser recriação; descoberta, redescoberta.

É como se a mente fosse um grande baú cheio de brinquedos, e nós fôssemos uma criança que, deslumbrada com tantos brinquedos, escolhe um para brincar, mas logo se cansa, jogando-o de volta no baú, para que uma outra criança o descubra no futuro. Nos olhos de cada criança, o mesmo brinquedo é sempre uma grande novidade.

Claro, às vezes algo de realmente novo e inédito aparece no panorama das idéias, um brinquedo novo no baú que vira foco de grande atenção durante um tempo, mas que aos poucos vai sendo posto de lado, pronto para ser redescoberto mais adiante. Levando essa analogia um pouco mais além, nossa mente é como um baú, que pode crescer para acomodar sempre mais brinquedos. Mas, como todos nós sabemos, alguns brinquedos, mesmo que velhos, serão sempre nossos favoritos.

Quando nos perguntamos de onde vieram as primeiras idéias filosóficas, as sementes do pensamento moderno ocidental, não temos a menor dúvida da resposta: da Grécia Antiga, em particular do período entre os séculos 4 a.C. e 6 a.C. O início dessa aventura intelectual é marcado pelo aparecimento dos filósofos pré-socráticos, que, segundo sabemos, foram os primeiros a tentar responder questões sobre a natureza usando a razão e não a mitologia ou a religião.

Esse apetite pelo saber racional, motivado pelo mesmo senso de mistério que motiva o pensamento religioso, está na raiz de toda a ciência. Às vezes ele é chamado de "encantamento jônico", celebrando os primeiro filósofos pré-socráticos que habitaram a Jônia, província grega na costa oeste da atual Turquia. Segundo Aristóteles, o primeiro deles foi Tales, que postulou, em uma visão profundamente orgânica da natureza, que a substância fundamental do cosmo é a água. Com esse esforço, nasce a idéia de se buscar por uma estrutura material unificada no mundo, algo que motiva o trabalho de cientistas em várias áreas distintas, da física de partículas elementares à biologia molecular e genética.

Para Tales e seus discípulos, a natureza é uma entidade dinâmica, em constante transformação, se renovando indefinidamente em novas formas e criações. Essa visão foi criticada por uma outra escola pré-socrática, a escola fundada por Parmênides, que acreditava exatamente no oposto: o que é essencial não pode se transformar. O que "é" simplesmente é. Nós podemos detectar aqui o germe da idéia de uma entidade eterna, transcendente, que está além das transformações naturais, que são necessariamente menos fundamentais. O debate entre o eterno e o novo, o Ser e o Vir-a-Ser, já havia começado então, há 2.500 anos. Ou, quem sabe, até antes disso. Pois esses são dois de nossos brinquedos preferidos.

A esse debate, podemos juntar a tradição pitagórica, que unia de forma mística o estudo da natureza por meio da razão e da espiritualidade. Para os pitagóricos, sem dúvida embriagados pelo encantamento jônico, os números eram mais do que números, suas razões e proporções uma espécie de escrita simbólica da razão universal. O estudo da natureza por meio dos números era o estudo dessa razão, o motivo mais nobre de dedicação do filósofo. Hoje, pouco resta de concreto dessas antigas tradições intelectuais. Mas, se os vários detalhes foram apagados pelo tempo, sua essência continua a nos inspirar, brilhando sempre um pouco mais do que os outros brinquedos no vasto baú da criatividade humana.

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