sábado, 3 de outubro de 1998

Do nariz de Tycho Brahe aos raios X do Universo

MARCELO GLEISER
especial para a Folha

O grande astrônomo dinamarquês Tycho Brahe tinha grandes problemas com seu nariz. Na verdade, seus problemas não eram pelo nariz, mas por sua falta; um golpe da espada de seu primo em um duelo levou-lhe a maior parte do nariz. Como não ter nariz não era aceitável para a corte dinamarquesa, ele moldou um a partir de uma amálgama metálica, cuja composição ele variava de tempos em tempos em seu laboratório.

Aparentemente, Tycho sofria muito com seu nariz; não só a visão de uma pessoa com um nariz metálico era, mesmo no século 16, bastante aterrorizante, como o contato da amálgama com a pele era muito desconfortável. Daí que Tycho procurava continuamente por uma fórmula mais suave para seu rosto. Na noite de 11 de novembro de 1572, quando voltava de seu laboratório alquímico, Tycho viu algo inesperado: aparentemente, uma nova estrela surgira na constelação de Cassiopéia, que tem a forma de um "W" (ou talvez um "M", dependendo do ângulo e da pessoa que a observa).

Na época, a idéia de que uma nova estrela poderia surgir nos céus era absurda. De acordo com a filosofia aristotélica, que ainda dominava o meio acadêmico, os céus eram imutáveis, qualquer transformação sendo relegada à esfera abaixo da órbita lunar. Ora, como uma estrela poderia então surgir do nada? Tycho demonstrou que a "estrela nova" estava muito além da órbita lunar. Mais ainda, essa "estrela" era especial, pois era visível até durante o dia! Ele acompanhou a estrela durante os quatro meses em que ela permaneceu visível a olho nu. (O telescópio só foi usado metodicamente em astronomia a partir de 1609).

Tycho havia observado uma explosão de supernova, o evento que marca a "morte" de estrelas com massas consideravelmente maiores do que a massa do Sol. Suas observações contribuíram para a lenta demolição do edifício aristotélico, abrindo as portas para uma nova astronomia, em que mudanças caracterizam não só os objetos celestes, de planetas a galáxias, mas o próprio Universo. Essa visão dinâmica se deve principalmente à existência de instrumentos cada vez mais poderosos, que permitiram observar fenômenos celestes a distâncias cada vez maiores e com precisão também maior. Essa corrida por visões cada vez mais distantes e precisas é uma busca sem fim, uma metáfora da nossa curiosidade em conhecer as esquinas mais reclusas do Universo que habitamos.

Recentemente, a Nasa, agência espacial dos EUA, lançou um poderoso telescópio, cuja órbita chega a distâncias até 1/3 da distância entre a Terra e a Lua. Esse telescópio difere dos telescópios orbitais, como o Hubble, pois ele não "vê" o Universo dentro de seu espectro visível; conhecido como "Chandra" -em homenagem ao astrofísico indiano Subrahmanyan Chandrasekhar (realmente, não dava para usar o nome inteiro), cujas contribuições foram fundamentais para a compreensão dos processos que determinam a estrutura e o colapso de uma estrela-, esse telescópio produz imagens em raios X, revelando processos que são invisíveis a olho nu.

Posso imaginar a alegria de Tycho Brahe, hoje na parte do Paraíso reservada aos grandes astrônomos, ao saber que a primeira imagem do Chandra foi também de uma supernova em Cassiopéia (não a mesma). E os resultados não poderiam ter sido melhores; as imagens revelam as ondas de material expelido durante a explosão, hoje viajando a velocidades de cerca de 15 milhões de quilômetros por hora. A propagação das ondas mostra como a matéria se espalha pelo espaço interestelar, que é o mecanismo aceito hoje para explicar a distribuição de elementos químicos na galáxia; os mais pesados são produzidos nos momentos finais do colapso que marca o fim da estrela, sendo então distribuídos pelo espaço. O ditado que afirma sermos poeira das estrelas é perfeitamente correto. Inclusive o nariz metálico de Tycho.

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