domingo, 1 de novembro de 1998

O gene egoísta e a indiferença da natureza

MARCELO GLEISER
especial pata a Folha

Eu me lembro do choque e irritação que sentia, quando criança, ao assistir a esses documentários sobre a violência do mundo animal; batalhas mortais entre escorpiões e aranhas, ou centenas de formigas devorando um lagarto ainda vivo, ou baleias assassinas atacando focas e pinguins, ou leões atacando antílopes etc. E, para finalizar, apareciam as detestáveis hienas, "rindo" enquanto comiam os restos de algum pobre animal.

Como que a natureza pode ser assim tão cruel e insensível, indiferente a tanta dor e sofrimento? (Eu vou me abster de falar da dor e sofrimento que a espécie dominante do planeta, supostamente a de maior sofisticação, cria não só nos animais, mas também em si própria. Bem, acho que já falei.) Certos exemplos são particularmente horríveis: existe uma espécie de vespa cuja fêmea deposita seus ovos dentro de lagartas. Ela paralisa a lagarta com seu veneno, e, quando os ovos chocam, as larvas podem se alimentar das entranhas da lagarta, que assiste viva ao martírio de ser devorada de dentro para fora.

A resposta é que a natureza não tem nada a dizer sobre compaixão ou ética de comportamento. Por trás dessas ações assassinas se esconde um motivo simples: a preservação de uma determinada espécie por meio da sobrevivência e transmissão de seu material genético para futuras gerações. Portanto, para entendermos as intenções da vespa ou do leão, temos de esquecer qualquer tipo de julgamento que possamos fazer com relação à "humanidade" desses atos (aliás, não é à toa que a palavra "humano", quando usada como adjetivo, expressa o que chamaríamos de comportamento decente. Parece que isentamos o resto do mundo animal desse comportamento, embora seja óbvio o quanto é fácil para nós nos unirmos aos animais em nossas ações "desumanas").

O gene é um grande egoísta. O zoólogo e escritor inglês Richard Dawkins, um dos grandes divulgadores de ciência para o público não-especializado, usa frequentemente esse termo "gene egoísta", inclusive como título de um de seus livros. A idéia é que a preservação (pela sobrevivência do animal) e a transmissão (pela geração de uma prole) de DNA -material genético dos seres vivos- explicam vários "mistérios" do mundo natural, incluindo a sua aparente crueldade, que tanto nos choca nos documentários de TV.

Por exemplo, a plumagem às vezes excessiva nos machos de algumas espécies de pássaros, como o pavão, ou as complicadas e elaboradas danças de acasalamento de outras podem ser explicadas pelo egoísmo dos genes; o macho com melhor plumagem, o melhor dançarino ou o melhor cantor são, aos olhos da fêmea, os portadores dos genes mais saudáveis e, portanto, uma melhor escolha para o acasalamento. E quanto mais saudáveis os pais, mais saudáveis serão seus descendentes.

Como podemos ter certeza, ou ao menos defender, esse tipo de argumento? Um dos métodos é conhecido como "engenharia ao reverso": Ao analisarmos um par de predador e presa, como o leão e o antílope, vemos que ambos são equipados para cumprir suas missões; o leão, com suas garras, dentes e músculos, para perseguir, atacar e matar o antílope; o antílope, para escapar o mais rapidamente possível do leão. O equilíbrio é alcançado à medida que os números de animais das duas espécies vai se autocontrolando. Sem leões, as savanas africanas estariam abarrotadas de antílopes, e, sem antílopes, os leões morreriam de fome (claro, estou simplificando o sistema predador-presa para exemplificar o argumento).

Segundo esse prisma, a idéia de compaixão é puramente humana. Predadores não têm a menor culpa de matar suas presas, pois sua sobrevivência e a de sua espécie dependem dessa atividade. E na mesma espécie? Para propagar seu DNA, machos podem lutar até a morte por uma fêmea ou pela liderança do grupo. Mas aqui poderíamos falar também da espécie humana, não?

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