domingo, 8 de novembro de 1998

A importância do imperfeito na arte e na ciência

MARCELO GLEISER
especial para a Folha

O conceito de perfeição é algo que guia muitas de nossas aspirações, tanto em nossas vidas privadas como no ambiente profissional. Falamos, ou ouvimos falar, de "relações perfeitas" entre duas pessoas como um modelo a ser seguido, ou de almejar sempre a perfeição no trabalho, "quanto mais perfeito, mais eficiente", etc. Na religião, aprendemos que nosso objetivo é chegar ao paraíso, lar da perfeição absoluta, final de jornada para aqueles que, se não conseguiram atingir a perfeição em vida, pelo menos tentaram. E, claro, o belo e o perfeito em geral andam de mãos dadas.

Como não poderia deixar de ser, muito da criatividade humana, nas artes ou nas ciências, é inspirado pelo ideal de perfeição. Mas nem tudo. Pelo contrário, várias idéias que revolucionaram nossa produção artística e científica vêm justamente da exaltação ou da percepção da importância do imperfeito.

O leitor pode pensar que estou enlouquecendo ou que acordei de mau humor. Mas não é por aí. Nas artes, exemplos do rompimento com a busca pela perfeição são fáceis de encontrar; de certa forma, quase toda a pintura moderna é ou foi baseada nesse esforço de explorar o imperfeito. Isso não significa que o imperfeito não seja belo. Por exemplo, quem já apreciou um quadro de Monet, em particular aqueles inspirados por seus jardins em Giverny, sabe que existe muita beleza no imperfeito. Talvez possamos até dizer que a pintura moderna tem como objetivo encontrar a estética do imperfeito. O mesmo com a música atonal ou esculturas abstratas. Hoje, o imperfeito é muito mais inspirador do que o perfeito.

Na física moderna, o imperfeito ocupa um lugar de honra. De fato, caso a natureza fosse perfeita, o Universo seria um lugar muito sem graça. Do microcosmo das partículas elementares da matéria ao macrocosmo das galáxias e mesmo do Universo, imperfeição é fundamental. Isso não significa que a idéia de imperfeição, ou matematicamente, de simetria exata, não seja importante na construção de nossas teorias. Sem a menor dúvida, o fato de muitos sistemas apresentarem um alto grau de simetria é fundamental para seu estudo. Por exemplo, a estrutura hexagonal dos flocos de neve é uma manifestação macroscópica de simetrias que existem em nível molecular. Mas, ao mesmo tempo, dois flocos de neve jamais serão iguais. A natureza cria uma variação sem fim em torno de um mesmo tema, ou simetria.

Segundo nossas teorias atuais, a geração de estruturas complexas a partir de componentes simples é um processo que depende fundamentalmente de alguma imperfeição. De modo geral, a coisa funciona assim: primeiro, construímos um modelo que exibe um altíssimo grau de simetria. Por exemplo, esse modelo pode descrever como as partículas elementares da matéria interagem entre si a energias muito altas, mais altas do que as que podemos simular em experimentos. Como consequência dessa simetria, o modelo exibe certas propriedades. A teoria da grande unificação diz que, em energias muito altas, as forças nucleares forte e fraca são unificadas com a força eletromagnética. A unificação das forças é consequência das simetrias exibidas com as interações das partículas com essas energias.

O segundo passo é dizer que a simetria é quebrada em energias mais baixas. Ou seja, em energia mais baixa, as forças forte, fraca e eletromagnética não se comportam mais de modo unificado ou simétrico. Em particular, esse é o caso das energias em que vivemos, em nossa realidade assimétrica. Durante a história do Universo, houve várias quebras de simetria. Como produto dessas imperfeições, apareceram as massas dos elétrons, prótons e nêutrons, as partículas que constituem a matéria. Vários outros "fósseis" das imperfeições cósmicas foram propostos nos últimos 20 anos. Cada vez fica mais claro que, a nova ciência, como a nova arte, precisa do imperfeito para criar.

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