domingo, 29 de novembro de 1998

Partículas violam a reversibilidade do tempo

MARCELO GLEISER
especial para a Folha

Imagine se você gravasse em vídeo as cenas de um amigo seu pulando um obstáculo. Quando, por brincadeira, você resolve passar o vídeo de trás para a frente, seus olhos mal podem acreditar no que vêem. A ordem dos fenômenos se repete exatamente de forma inversa à original.

Claro, se algum fenômeno desse tipo lhe ocorresse, você iria imediatamente atribuí-lo a uma força sobrenatural, que violaria as leis básicas da física. Esse tipo de fenômeno é chamado de violação da reversibilidade temporal, isto é, a história de trás para a frente é diferente da história original.

Felizmente, ao menos este colunista nunca presenciou tais fenômenos ocorrendo em escalas macroscópicas. Mas, no mundo das partículas subatômicas, fenômenos como esse não só podem acontecer como foram observados recentemente.

Em 12 de outubro, Dia da Criança no Brasil, um grupo de físicos trabalhando em um laboratório de física de altas energias, conhecido como Fermilab, perto de Chicago (EUA), anunciou a observação de violação da reversibilidade temporal em certas reações envolvendo partículas conhecidas como "kaons neutros". Resultados anteriores, de menor precisão, renderam o Prêmio Nobel de Física a James Cronin e a Val L. Fitch em 1980.

Para entendermos melhor a importância dessa descoberta, é bom lembrarmos que a matéria é feita de vários corpúsculos que chamamos de partículas elementares, como o elétron ou os quarks, que compõem os prótons e os nêutrons. Uma partícula é elementar quando ela não pode ser dividida em outras menores. Várias partículas são instáveis, ou seja, podem decair em outras. O nêutron, quando está livre do núcleo atômico, decai em alguns segundos. O próton, de acordo com as teorias atuais das partículas elementares, também pode decair, mas seu tempo de vida é extremamente grande, muito maior do que a idade do Universo.

Fora essas partículas mais conhecidas, centenas de outras são produzidas durante colisões sob altas energias em aceleradores como o do Fermilab. Basicamente, a enorme energia de movimento das partículas é transmutada em massa, ou seja, em novas partículas durante colisões. Essas partículas são como os fragmentos de uma explosão voando em todas as direções, sendo então estudadas por detectores de partículas. A maioria é instável e decai em frações infinitesimais de segundo. O kaon neutro é uma delas.

Os cientistas do Fermilab estudaram milhões de decaimentos do kaon, prestando atenção em um tipo especial, cujo decaimento resulta em dois pares de partículas, o elétron e sua antipartícula, o pósitron, e um píon com carga positiva e sua antipartícula com carga negativa. (A geração de matéria e antimatéria, ou partículas e suas antipartículas, é normal em física de altas energias. Apenas no mundo à nossa volta é que a antimatéria está ausente, um mistério intimamente ligado a essa descoberta.) O kaon neutro, sem carga elétrica, decai em dois pares de partículas cuja carga total é também zero, conforme dita a lei de conservação da carga elétrica.

Esse decaimento do kaon é extremamente raro, ocorrendo uma vez a cada 3 milhões de decaimentos. Mas o time do Fermilab conseguiu observar 1.800 decaimentos desse tipo. O resultado que choca os físicos é que 14% desses fenômenos violaram a reversibilidade temporal. O kaon decai como uma bomba: as quatro partículas voando em certas direções. Essas direções, quando invertidas como num filme passado de trás para frente, não correspondem ao previsto pela reversão temporal; as partículas aparecem "de cabeça para baixo". Essa assimetria está ligada a uma desigualdade que existe entre matéria e antimatéria. Como nós somos feitos de matéria, esse experimento poderá nos ajudar a desvendar um dos mistérios mais básicos da física, ligado à nossa própria origem.

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