domingo, 6 de setembro de 1998

Ciência, fé e o sensacionalismo criado pela imprensa

MARCELO GLEISER
especial para a Folha

No dia 20 de julho, a prestigiosa revista semanal "Newsweek", dos EUA, publicou um surpreendente artigo de capa, intitulado "A ciência encontra Deus". A capa mostrava o vitral de uma igreja, com santos substituídos por cientistas em seus jalecos brancos e cruzes substituídas por telescópios e microscópios. Planetas, estrelas e galáxias adornam a imagem central, emoldurada pela estrutura helicoidal de uma molécula de DNA.

Segundo o texto, um número cada vez maior de cientistas está descobrindo Deus por meio de suas pesquisas. E isso vai contra a idéia que temos da ciência moderna que, desde os tempos de Galileu e Newton, só tem se afastado da religião e da fé. Confesso que fiquei chocado com o artigo e com o perigo e confusão que textos como esse podem gerar.

Sem dúvida, é dever da imprensa buscar notícias interessantes e calcadas em fatos concretos. Apesar disso, jornais, revistas, rádio ou TV são empresas que visam maximizar seu lucro, enfrentando uma competição intensa. Esse é o desafio de um jornalista. A tentação de distorcer os fatos em nome do sensacionalismo fácil e rentável é grande. As empresas respeitáveis são justamente as que não sucumbem a essa tentação.

Quais são, então, os argumentos do artigo? Historicamente, a ciência sempre teve o papel de prover a luz nas trevas e propor explicações racionais para fenômenos que, sem ela, ficariam no terreno da superstição. Mesmo que a origem do questionamento científico tenha suas raízes muito entrelaçadas com a religião e a pseudo-religião, a evolução da ciência é marcada por um afastamento cada vez maior de suas origens. Com Galileu, Newton e o racionalismo que os seguiu, a ciência passou a existir independentemente da religião, em um divórcio marcado por conflitos muitas vezes trágicos.

Ao chegarmos no final do século 20, a ciência progrediu a ponto de poder encarar, com seus próprios métodos, questões que anteriormente eram exclusivas da religião, como a origem do Universo ou da vida. É aqui, segundo o artigo, na fronteira do conhecido e do desconhecido, que vários cientistas encontraram Deus. Exemplos são citados de cientistas que "desistiram" de entender as questões de forma científica, preferindo optar por uma solução religiosa. Há outros que vêem a manifestação de Deus em suas pesquisas ou na organização do mundo natural. O artigo sugere que a ciência precisa de Deus.

Será que essa tendência é assim tão nova? Absolutamente não! Durante a história da ciência encontramos vários cientistas que justificavam sua devoção à pesquisa de forma religiosa, ou que encontravam uma inspiração espiritual em seu trabalho. Desde Platão, a idéia de que a surpreendente ordem da natureza é obra de um arquiteto universal tem sido usada como metáfora para o trabalho científico. Conhecer a natureza e explorar suas leis é, para esses cientistas, aproximar-se de Deus ou da natureza divina do mundo. Kepler, Newton, Einstein e muitos outros responsáveis pelo desenvolvimento de nossa ciência usavam metáforas semelhantes às idéias platônicas ao justificar sua devoção ao trabalho científico.

Não existe nenhum conflito em uma justificativa religiosa ou espiritual para o trabalho científico, contanto que seu produto satisfaça às regras impostas pela comunidade científica. A inspiração para se fazer ciência é subjetiva e varia entre os cientistas. Mas o produto de suas pesquisas tem valor universal, o que separa claramente a ciência da religião. Quando tantas pessoas se afastam das religiões tradicionais em busca de outras respostas para seus dilemas, é muito perigoso colocar o cientista como o sacerdote da sociedade moderna. A ciência nos dá a luz para muitas trevas sem a necessidade da fé. Para alguns, isso já é o bastante. Para outros, só a fé pode iluminar certas trevas. O importante é que cada indivíduo possa fazer uma escolha consciente do caminho a seguir.

Nenhum comentário:

Postar um comentário