domingo, 20 de setembro de 1998

A cosmologia e a origem da matéria

MARCELO GLEISER
especial para a Folha

Uma das questões mais profundas sobre o Universo é talvez uma das mais simples: Por que existe algo em vez de nada? Essa pergunta, tão antiga quanto a história nos permite saber, foi inicialmente respondida por meio da religião. Várias culturas criaram histórias, mitos de criação, com explicações sobre a existência do mundo material.

Como não podia deixar de ser, a cosmologia moderna também oferece explicações para a existência material do Universo, obviamente sem alçar mão de uma força sobrenatural. O que distingue as propostas modernas das anteriores é que elas são idéias testáveis, ou seja, elas obedecem aos rigorosos testes aplicados a teorias científicas, antes (e mesmo depois) de essas serem aceitas como explicações viáveis dos fenômenos naturais. Das várias explicações propostas, apenas uma (ou nenhuma!) será confirmada no futuro, por meio de observações e experimentos.

A idéia mais promissora, segundo este colunista, vem de uma modificação do modelo do Big Bang conhecida como universo inflacionário. O modelo do Big Bang descreve o Universo surgindo, há aproximadamente 15 bilhões de anos, de um estado extremamente denso e quente. Mas o que é esse estado inicial, denso e muito quente? Segundo o modelo inflacionário, no início nenhum tipo de matéria existia no Universo. Não existiam elétrons, fótons, prótons ou seus constituintes conhecidos como quarks. Apenas o que chamamos de "energia de vácuo" existia. O leitor pode pensar que "energia de vácuo é só um nome científico para Deus!". Nada disso. Vácuo significa o estado de menor energia possível de um sistema de partículas, em geral um estado "vazio", em que não há partículas de qualquer tipo. O vácuo da física é um nada material.

Como nos ensina a mecânica quântica, o vácuo absoluto, a ausência total de energia, não existe. Existirão sempre pequenas flutuações de energia, como pequenas ondas na superfície do mar, que podem, por instantes, ser transformadas em partículas, como explica a relação E=mc2. Essa dança de transformação de energia em partícula e de volta ao vácuo é chamada de flutuação de vácuo. Em física de partículas, o vazio absoluto não existe.

As teorias que descrevem como as partículas de matéria interagem admitem, em geral, dois (ou mais) tipos de vácuo, chamados de vácuo verdadeiro e vácuo falso. O vácuo falso é instável e, após algum tempo, "decai" no vácuo verdadeiro. Um exemplo familiar desse tipo de transformação ocorre quando resfriamos rapidamente o vapor d'água abaixo de seu ponto de condensação, de 100C. O vapor, nesse estado super-resfriado, está em seu vácuo falso. Aos poucos, gotas de água irão se formar em seu interior, e o vapor resfriado irá se transformar em água -o vácuo verdadeiro em temperaturas abaixo de 100C (mas acima de 0C!). Ao decair, o vácuo falso libera uma grande quantidade de calor.

Segundo o modelo inflacionário, o Universo primordial também surgiu de um estado de vácuo falso. Durante esse estágio, ele expandiu de forma extremamente rápida, daí o nome inflacionário. Após algum tempo, o vácuo falso decaiu e o Universo passou a habitar seu vácuo verdadeiro, como a água em seu estado líquido. Durante a passagem de um vácuo a outro, que é extremamente dramática e objeto de pesquisa deste colunista, uma quantidade enorme de calor foi liberada. Esse, segundo o modelo, é o calor do Big Bang! Para o Universo inflacionário, o Big Bang é produto do decaimento do Universo de seu vácuo falso em seu vácuo verdadeiro.

Resta compreendermos por que o Universo iniciou sua existência no estado instável. Várias idéias foram propostas, e algumas delas serão testadas nos próximos anos por meio de uma vasta rede de experimentos e observações astronômicas. Como toda boa teoria científica, a decisão final não fica por conta de sua beleza ou de nossa fé, mas por conta dos dados experimentais.

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