domingo, 13 de dezembro de 1998

Catedrais em busca do desconhecido

MARCELO GLEISER
especial para a Folha

A história da humanidade é pontuada pela construção de monumentos que visam estabelecer uma ponte entre o nosso mundo e outros. Os egípcios criaram as pirâmides, mausoléus que asseguravam a continuidade da vida após a morte, ligando nosso mundo ao do além. Com olhos modernos, podemos até ver as pirâmides como uma espécie de espaçonave que levava as múmias em seus sarcófagos até sua destinação final, o outro mundo. Ao nos depararmos com a grandiosidade das pirâmides, logo perguntamos: "Como teria sido possível construir tais monumentos sem tecnologias avançadas?".

Na Idade Média, as belíssimas catedrais góticas também funcionavam como um veículo de transporte de nossa esfera para a esfera divina. A verticalidade da arquitetura gótica induzia as pessoas a olhar para o alto com respeito e temor, em um rito de passagem entre o nosso mundo, com suas atribulações, e o paraíso medieval cristão, com sua promessa de uma vida eterna e livre de transtornos.

Nos séculos 15 e 16, nossos monumentos de exploração de novos mundos ganharam uma nova dimensão: a capacidade de nos transportar fisicamente, e não só espiritualmente, aos nossos objetivos finais. Simbolicamente, as caravelas representavam uma peregrinação espiritual, uma ponte entre o nosso mundo e o mundo do além, se bem que, na prática, os objetivos econômicos eram mais óbvios. A exploração de novos mundos, espirituais ou não, sempre representou um passaporte para uma nova vida, com todas as promessas e expectativas de liberdade e conforto que fazem parte de qualquer peregrinação.

Após buscarmos a comunhão com Deus por meio de nossas catedrais e a promessa de paraísos terrestres em nossas caravelas, neste final de milênio nos lançamos ao espaço, nossa nova fronteira. Nossas catedrais são as espaçonaves, as pontes entre o nosso mundo e esse vasto Universo do qual fazemos parte.

No dia 4 de dezembro, a espaçonave americana Endeavour iniciou sua missão mais importante: sua carga era o segundo módulo de construção da Estação Espacial Internacional (ISS), um dos projetos de engenharia mais ambiciosos de todos os tempos. Transportado pela Endeavour, o módulo americano, chamado Unidade, uniu-se ao módulo russo Zaria (Aurora), que já estava em órbita.

Quando terminada, em 2004, a Estação Espacial terá uma área equivalente a um campo de futebol, com um volume de cerca de dois Boeing-747, orbitando a Terra a uma velocidade de 26 mil quilômetros por segundo. Essa catedral flutuante está sendo construída por 16 países e terá um custo total em torno de US$ 60 bilhões. Um projeto dessa grandeza e custo não pode evitar um número infinito de complicações técnicas, financeiras e políticas. Críticos afirmam que essa quantidade absurda de dinheiro poderia ter sido dividida entre inúmeros projetos menores, que provavelmente produziriam resultados científicos muito mais relevantes do que os experimentos que serão realizados na ISS. Em um mundo ideal, a pesquisa teria um orçamento maior, a torta cresceria para alimentar mais pessoas. Me pergunto se os arquitetos egípcios e medievais sofreram também esse tipo de pressão, quando o faraó ou o rei e bispos esvaziaram os cofres públicos para construir seus veículos de peregrinação.

A estação espacial poderá alojar uma tripulação de sete astronautas, cuja função incluirá não só experiências científicas, mas também o planejamento de expedições tripuladas para a Lua e para Marte, no início do próximo século. Tal como suas nobres antecessoras, ela será nossa ponte para outros mundos, nosso instrumento de exploração de novas realidades e aspirações. Posso até imaginar arqueólogos do século 23 se perguntando, maravilhados, como que um monumento dessa grandiosidade foi construído com a rudimentar tecnologia do século 20.

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