domingo, 12 de janeiro de 2003

Pragmatismo e sonho

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Qual é a origem da criatividade científica? Essa pergunta, como tantas outras, tem muitas respostas. O que, na opinião de alguns, significa que nenhuma delas é muito satisfatória. Eu discordo. A pergunta é que está mal formulada.

Discutir criatividade em ciência não faz sentido. O que faz sentido é discutir a criatividade dos cientistas. Existem os mais pragmáticos, que equacionam fazer ciência com a aquisição e organização de dados obtidos no laboratório ou por meio de observações de fontes longínquas, como em astronomia. Para esses, o progresso em ciência depende da precisão dessas medidas, o que implica uma íntima relação entre o progresso tecnológico e o científico. Sem novas máquinas e aparelhos de medição, a ciência não avança.

Existem também os sonhadores, aqueles cuja criatividade brota de uma pré-concepção de como o mundo deve ser organizado, em geral inspirada por conceitos estéticos, como simetria e beleza. "Sonhadores" talvez seja uma caracterização exagerada. Mas o ponto é que, sem a impetuosidade, às vezes quase que irracional, que vem da inspiração, fica difícil desvendar os mistérios mais profundos da natureza. Ou seja, para os sonhadores, acreditar na verdade de suas idéias é fundamental, mesmo que elas sejam inicialmente ridicularizadas por outros sonhadores ou por pragmáticos.

Claro, o adjetivo "sonhador", aqui, deve ser interpretado dentro de parâmetros científicos. Sonho não significa a atividade onírica comum a todos, mas a inspiração que leva à construção de teorias cujas previsões devem ser testadas cuidadosamente. Afinal, está se falando de criatividade em ciência e não se deve perder de vista que sua missão é explicar o funcionamento do mundo à nossa volta (e o que existe dentro de nós).

Existem inúmeros exemplos na história da ciência de pragmáticos e sonhadores. Mas poucos ilustram tão bem a diferença entre os dois processos criativos quanto as histórias do dinamarquês Thycho Brahe (1546-1601) e do alemão Johannes Kepler (1571-1630).

Brahe transformou a astronomia com a introdução de instrumentos de altíssima precisão, no final do século 16. Ele morreu oito anos antes da introdução do telescópio como instrumento astronômico. Portanto, todas as suas medidas das posições dos astros celestes, de planetas e cometas a estrelas e "estrelas novas" (hoje chamadas supernovas), foram realizadas a olho nu.

Na época, o modelo introduzido por Copérnico em 1543, que tinha o Sol e não a Terra no centro do cosmo, ainda não era universalmente aceito. Brahe, armado de seus instrumentos, entendeu que a questão só seria resolvida definitivamente a partir de dados extremamente precisos.
Como tinha dinheiro, pôde financiar a construção de instrumentos que foram então usados na coleta de dados. Mas a Brahe, brilhante observador, faltava o talento que poria então esses dados em ordem, montando o arcabouço teórico que explicaria a estrutura do cosmo. Aqui entra Kepler, o sonhador.

Kepler foi convidado por Brahe para ser seu assistente no início de 1600. Mesmo sem dados precisos, ele já havia "adivinhado" a estrutura do cosmos. Para ele, apenas a geometria poderia fornecer uma resposta precisa. Isso porque Kepler era herdeiro das idéias dos pitagóricos, que viam a organização cósmica como sendo dependente dos arranjos dos números e das formas geométricas. Para Kepler, Deus era um geômetra, que certamente usou essas proporções estéticas no desenho do cosmo. A questão era encontrar o arranjo preciso. E, para isso, Kepler precisava de dados.

O encontro entre os dois, apesar de muito tempestuoso, mudou a história da astronomia. Com os dados de Brahe, Kepler obteve as três leis que regem o movimento dos planetas em torno do Sol, confirmando definitivamente o sistema copernicano e fornecendo os elementos matemáticos que Newton mais tarde usou em sua Teoria da Gravitação Universal. A moral da história? Sem dados não há ciência; sem sonhos ela pode dar passos, mas não grande saltos.

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