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Ciência pode causar pânico. Às vezes com razão, como no caso do desenvolvimento de armas nucleares, químicas ou biológicas. Imagine o que aconteceria se um grupo terrorista, com uma bactéria geneticamente alterada, contaminasse o abastecimento de água de Brasília. A bactéria, "construída" em laboratórios clandestinos com tecnologia roubada de indústrias de ponta, mataria em apenas dois dias. A mídia espalharia a notícia com a velocidade da luz, alertando a população para o perigo. Nesse caso, a velocidade de propagação da informação e o choque da notícia salvariam inúmeras vidas. Vamos analisar o outro lado -a mídia propagando o pânico erroneamente, também devido a uma "ameaça" científica, agora nas mãos de cientistas: os cientistas como assassinos!
Eis um exemplo recente e, na minha opinião, bastante ilustrativo. Em julho de 1999, a prestigiosa revista "Scientific American" publicou reportagem sobre uma experiência do laboratório de Brookhaven (EUA), conhecida como "Colisor de Íons Relativísticos Pesados" (a sigla, em inglês, é RHIC). Na experiência, núcleos de átomos de ouro são bombardeados por prótons acelerados a velocidades próximas à velocidade da luz. A idéia é recriar, por frações de segundo, as condições existentes durante o primeiro centésimo de milésimo de segundo após o Big Bang, evento que marcou a origem do Universo. Segundo as teorias modernas da física nuclear, os prótons e os nêutrons (integrantes do núcleo atômico) são compostos por partículas chamadas quarks, que interagem entre si trocando outras partículas, os glúons. Os glúons agem como uma cola nuclear: mantêm o núcleo coeso, apesar da repulsão elétrica de seus componentes. A densidades e temperaturas muito altas, como no Universo primordial ou no centro das colisões no RHIC, o núcleo e seus componentes são transformados em um novo estado da matéria, um plasma de quarks e glúons. Essa é a previsão da teoria que o experimento irá testar.
O artigo da "Scientific American", intitulado "Mini Big Bang", provocou o interesse de alguns leitores. Um deles perguntou se o experimento poderia criar um miniburaco negro que engoliria a Terra; afinal, argumentou, Stephen Hawking escreveu que miniburacos negros teriam existido momentos após o Big Bang. A resposta foi dada por Frank Wilczek, físico renomado, então no Instituto de Estudos Avançados em Princeton: "A idéia é muito implausível", disse ele. "Mas outra forma de matéria poderia aparecer no experimento, chamada "strangelet", com resultados catastróficos. Mas isso também é implausível", finalizou. Implausibilidade representa algo muito diferente para um cientista treinado ou uma pessoa fora da área. Afinal, vencer na loteria também é implausível, mas acontece. O público quer ouvir a palavra "impossível", que raramente é usada em física, a menos que exista uma violação óbvia de suas leis.
Uma enxurrada de artigos sensacionalistas apareceu em seguida. O jornal inglês "The Times" publicou a manchete:  "Máquina do Big Bang pode destruir a  Terra". Um repórter da rede norte-americana ABC chamou o RHIC de "máquina do juízo final", acusando os cientistas  de "brincar de Deus". Um processo foi  aberto para parar o experimento; um jovem escreveu ao diretor de Brookhaven  dizendo estar desesperado com a possibilidade de um buraco negro em Nova  York; surgiu um rumor de que um buraco negro criado pelo RHIC teria engolido  o avião de John Kennedy Jr. Incrível a irresponsabilidade dos jornais e TVs que  propagaram esses absurdos. Incrível  também a falta de sensibilidade dos cientistas com relação à repercussão social de  seu trabalho. Ciência pode causar pânico, especialmente se a sua divulgação depender de profissionais despreparados e  do silêncio arrogante dos cientistas. Nesse meio tempo, no mês passado, o RHIC  entrou em funcionamento -e nós ainda  estamos aqui, sãos e salvos.
 
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