domingo, 12 de maio de 2002

Estrelas estranhas


Marcelo Gleiser
especial para a Folha

A natureza, como é de praxe, continua nos passando a perna. Podemos ver o desenvolvimento da ciência como uma corrida sem uma reta final, sem uma chegada. A pista se alonga continuamente, cheia de surpresas que jamais poderíamos haver previsto antes de contornar a última curva. O que, aliás, é ótimo. É importante não esquecer que a natureza é mesmo muito mais esperta do que nós. A nossa ciência é apenas uma descrição daquilo que somos capazes de enxergar, debruçando-nos sobre uma pequena janela aberta para uma realidade de enorme complexidade. Mas esse esforço todo é mais do que recompensado pelas coisas magníficas que podemos vislumbrar a partir de nossa humilde perspectiva.

Em meados de abril, dois grupos de astrônomos divulgaram suas descobertas relativas a duas estrelas muito estranhas. Essas estrelas fazem parte de uma população que já é meio excêntrica, a das estrelas de nêutrons. Talvez o leitor tenha ouvido falar em objetos chamados pulsares (mencionados até em um dos filmes da turma da Mônica, na década de 80): esses objetos têm massas comparáveis à massa do Sol, mas raios de apenas dez quilômetros, em média. Ou seja, um sol espremido no volume de uma montanha, o que resulta em uma densidade absolutamente enorme: uma colher de chá da matéria que compõe uma estrela de nêutrons pesaria em torno de um bilhão de toneladas aqui na Terra.

Os pulsares são estrelas de nêutrons jovens, girando a velocidades incríveis. Os mais rápidos completam mil voltas em torno de seu eixo em apenas um segundo. Ao "envelhecer", o pulsar vai diminuindo a sua taxa de rotação, até tornar-se quase estático.

Imagine um objeto não muito maior do que o monte Everest, com uma massa de 1 bilhão de toneladas e girando mil vezes por segundo. Realmente, é difícil acreditar que algo assim possa existir. Mas disso não temos dúvida, pois várias observações astronômicas são explicadas por objetos com essas propriedades. Mais uma dessas curvas inesperadas que a natureza nos impõe, mas que aceitamos de bom grado. Devo acrescentar que as estrelas de nêutrons foram propostas teoricamente três décadas antes de sua descoberta, o que prova que a nossa imaginação não é nada má.

O nome estrela de nêutrons vem do fato de esses objetos serem compostos principalmente por nêutrons, as partículas companheiras dos prótons no núcleo do átomo. De certa forma, estrelas de nêutrons são núcleos atômicos gigantes, os restos mortais de estrelas bem maiores do que o Sol que esgotaram o seu combustível nuclear e sucumbiram à própria implosão gravitacional, até encontrar uma nova estabilidade como uma densa bola de nêutrons. Estrelas ainda mais maciças não conseguem encontrar uma estabilidade na forma de estrelas de nêutrons e acabam a sua existência como buracos negros.

As duas descobertas recentes indicam que ainda temos muito o que aprender sobre esses objetos. Em uma delas, imagens do objeto RXJ1856.5-3754 (um nome nada romântico, diga-se de passagem) obtidas pelo telescópio de raios X (isto é, capaz de analisar a radiação emitida por um objeto astronômico na faixa do espectro dos raios X) Chandra mostram que ele tem um raio aproximado de cinco quilômetros, ou seja, metade daquele típico das estrelas de nêutrons. Isso tornaria a sua densidade ainda maior do que a discutida acima, o que não é aceitável dentro dos modelos comuns.

Os astrofísicos propõem que esse objeto não seja uma estrela de nêutrons, mas uma estrela composta por quarks, as partículas fundamentais que compõem os nêutrons e os prótons. O interessante é que, na Terra, é impossível obter quarks livres: eles sempre aparecem dentro de prótons e nêutrons.

A outra estrela estranha é conhecida como 3C58. O que ela tem de peculiar é a sua temperatura. O objeto 3C58 surgiu dos restos de uma estrela que explodiu em 1181 e, segundo os modelos atuais que explicam como estrelas de nêutrons se resfriam após a sua formação, deveria ser bem mais quente do que o medido. Uma explicação proposta é que o interior da estrela seja composto por partículas exóticas chamadas píons e káons, que, até o presente, só haviam sido observadas em colisões altamente energéticas feitas em aceleradores de partículas.
Ainda não sabemos se essas duas estrelas são mesmo compostas por quarks e outras partículas exóticas. Explicações menos excêntricas podem, no final, ser as corretas. Até termos as provas, eu prefiro apostar na criatividade da natureza e na sua capacidade de estar sempre a nos surpreender.

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