domingo, 19 de novembro de 2000

Em defesa da ciência básica

Marcelo Gleiser
Volta e meia, em cartas de leitores desta coluna ou em palestras abertas ao público, sou criticado por dedicar-me ao estudo de questões básicas da ciência e não a problemas mais imediatos que afligem a humanidade, como a fome, as doenças, a poluição, entre outros. O argumento, que tem as melhores intenções, é mais ou menos o seguinte: os cientistas deveriam ajudar a melhorar a qualidade de vida, e não perder tempo com o que acontece perto de um buraco negro, com o funcionamento das estrelas, com as partículas fundamentais da matéria ou com a compreensão da origem do Universo. Por que cientistas "perdem tempo" com questões tão removidas do nosso dia-a-dia quando eles poderiam estar tentando desenvolver novas curas para a Aids ou o câncer ou controlando o buraco da camada de ozônio? Será que não sentem uma obrigação ética de usar seus talentos para ajudar aos outros? Dada a importância da questão, acho que vale a pena elaborar o que poderia chamar de "apologia da ciência básica". Antes de mais nada, é importante definir o que é ciência básica, algo não tão simples. Ao distinguirmos ciência básica de ciência aplicada, estamos supondo que ela trata de questões que não estão diretamente ligadas a aplicações imediatas, como a criação de novas tecnologias. O problema com essa definição, que reflete parte da confusão causada por meus críticos (e de todos os outros cientistas básicos), é que é muito difícil prever se questões que agora parecem tão esotéricas irão encontrar aplicações práticas no futuro. Como ilustração, cito o desenvolvimento da mecânica quântica, que estuda o mundo dos átomos e moléculas. Quando cientistas como Planck, Einstein, Bohr e Heisenberg tentavam entender o comportamento do átomo no início do século, eles jamais poderiam imaginar que de suas investigações brotaria uma revolução tecnológica que transformou o mundo. Desse questionamento básico emergiram invenções como transistores, semicondutores e laseres, que dominam nossa realidade plena de computadores, fibras óticas, telefones celulares etc. E foi do estudo da física atômica que foram descobertas radiações como o raio X, que revolucionou a medicina e que, por sua vez, ajudou outras revoluções, como a da biologia molecular e a da genética. Julgar a ciência básica a curto prazo cria a falsa idéia de que especulações teóricas jamais poderão ser relevantes na prática, sejam sobre átomos ou sobre estrelas. Outro ponto importante é o número de cientistas que se dedicam à ciência básica, contra os que trabalham em pesquisa aplicada. Sem a menor dúvida, físicos trabalhando em áreas mais teóricas são minoria absoluta. Apesar de não ter dados exatos, arriscaria que eles não passam de 10% a 20% dos físicos trabalhando em universidades e indústrias. Mais ainda, é injusto supor que mesmo os físicos ou os matemáticos trabalhando em assuntos esotéricos não se "importem" com os problemas do mundo. Será que devemos fazer a mesma crítica a banqueiros, a escritores, a comerciantes ou a motoristas de táxi? Não só a maioria desses cientistas leciona em universidades, educando centenas de jovens por ano, como muitos deles têm atividades paralelas, ligadas à preservação do ambiente (caso deste colunista) ou à preservação da democracia neste e em outros países. Ofereço um último argumento. A humanidade precisa de pelo menos alguns sonhadores, daqueles indivíduos que criam novas visões de mundo por meio de suas fantasias, sejam elas artísticas ou intelectuais. Um quadro não ajuda a combater a fome, mas ajuda a criar uma estética que nos eleva acima da trivialidade diária, que nos ajuda a expandir nossos horizontes. Uma teoria nova sobre a origem do Universo também. São poucos os pintores e astrofísicos deste mundo. E, por eles existirem, o mundo é um lugar mais especial. Precisamos ter a generosidade de criar um mundo onde pintores, astrofísicos, banqueiros, comerciantes e motoristas de táxi possam todos voltar a sua atenção para os problemas que afligem a humanidade. Cada um de nós deve pensar globalmente e atuar localmente, cientistas ou não.

Nenhum comentário:

Postar um comentário