domingo, 21 de julho de 2002

O Deus relojoeiro: uma parábola revisitada


Marcelo Gleiser
especial para a Folha

Em 1802, o teólogo inglês William Paley propôs o seguinte argumento tentando justificar a existência de Deus, que eu parafraseio: "Imagine uma pessoa passeando em uma floresta. Essa pessoa é perfeitamente normal, mas ela nunca havia visto um relógio. Enquanto ela explora as belezas naturais, encantada com tantas árvores, flores e animais, depara um relógio de bolso jogado aos pés de um arbusto. Ela pega o relógio e, imediatamente, conclui que ele deve ter sido criado por Deus. Segundo essa pessoa, um instrumento de tal complexidade jamais poderia ter sido criado por processos naturais; era necessária a mão de Deus." Paley extrapola o argumento para o mundo natural, dizendo que a complexidade da natureza é rica demais para ter aparecido por acaso. Para ele, a natureza é o nosso relógio, cuja existência devemos atribuir à mão de Deus.

Eu gostaria de revisitar essa parábola, tomando a liberdade de mudar a sua perspectiva. Vamos voltar à floresta, onde uma pessoa encontra um relógio. Maravilhada, ela pega o relógio e leva-o para o seu vilarejo. Lá chegando, reúne o conselho de anciãos e revela o misterioso tesouro perante o olhar incrédulo dos pressupostos sábios. Assustados, os anciãos começam a discutir o que fazer com tal instrumento, perguntando-se qual a sua função e quem o construiu.

Rapidamente, as opiniões se dividem em dois campos: aqueles que acreditam que o relógio é criação de Deus e aqueles que querem investigar a questão com mais cuidado. Os que acreditam que o relógio é obra de Deus querem decretá-lo sagrado e, portanto, intocável pelas mãos dos homens: o instrumento deve ser exposto como prova da existência de Deus, permanentemente protegido por uma redoma de cristal e por guardas. Sua existência deverá permanecer um mistério.

O outro grupo, por sua vez, quer examinar o instrumento, descobrir a sua função. Para eles, mesmo que a origem do instrumento seja, de fato, misteriosa, isso não significa que ela deva permanecer assim. Talvez, com paciência e criatividade, seja possível entender de onde ele veio e qual a sua função. Talvez o instrumento não tenha, no fim das contas, uma origem sobrenatural.

A briga entre as duas facções é feia. No final, vencem os que acreditam que o instrumento é criação de Deus e, portanto, é intocável. O relógio torna-se símbolo da existência de Deus e mais e mais pessoas passam a ir à igreja, ajoelhando e se benzendo com fervor perante o estranho objeto.

Anos se passam até que, um dia, um imenso terremoto destrói o vilarejo e a igreja. Ninguém consegue encontrar o relógio, perdido entre os escombros. Tropas do governo são despachadas da capital para ajudar nas escavações, procurando sobreviventes. Seu líder é um jovem capitão, muito audaz e curioso. Ele mesmo participa das escavações, ansioso por salvar vidas. No meio das montanhas de concreto e vidro, ele encontra, por acaso, o relógio, pondo-o discretamente em seu bolso: a história da misteriosa aparição do instrumento feito por Deus era famosa no país inteiro. Que sorte a dele encontrá-lo!

À noite, em sua tenda, o jovem capitão começa a examinar o estranho objeto. Ele puxa o único pino que encontrou e, para a sua surpresa, a parte posterior se abre, revelando o mecanismo interior. Girando o pino de um lado para o outro ele escuta o tique-taque e percebe que os ponteiros começam a se mover. Em menos de uma hora, o capitão descobre que o instrumento foi criado para marcar a passagem do tempo. Influenciado pelos ensinamentos teológicos de sua infância, ele se pergunta se esse é o aparelho que marcará a chegada do dia do Juízo Final. Rindo, conclui que o instrumento não tem nada de sobrenatural, que ele é criação humana.

Mas quem o criou? Antes de partir em busca de uma resposta, ele desmonta e remonta cuidadosamente o mecanismo do relógio. Em duas semanas, usando partes de madeira e pesos de pedra, o capitão constrói dois relógios bem grandes. Os incrédulos anciãos, ao receber os relógios de presente, imediatamente consideram o capitão como sendo o diabo. Eles só relaxam após vários habitantes da vila construírem os seus próprios relógios, seguindo as instruções do capitão. Alguns até penduram os relógios em suas casas, ao lado da cruz.

O capitão, então, sai pelo mundo em busca do construtor de relógios. E, mesmo que ele jamais o tenha encontrado, ele próprio torna-se em um grande relojoeiro e inventor. Assim faz a ciência, ao desvendar os mecanismos do mundo e ao nos ensinar a aceitar a dúvida como a única porta para o conhecimento.

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