domingo, 4 de janeiro de 2004

Inércia e balas de canhão


Marcelo Gleiser
especial para a Folha

Antes da época de Galileu Galilei, no início do século 17, existia uma grande confusão com relação ao que seria o movimento natural de um corpo.

Uma gravura feita durante a Idade Média mostra a trajetória de uma bala de canhão. A gravura faz parte de um tratado de balística, provavelmente para educar futuros comandantes de artilharia. O canhão estava na parte interior de um castelo protegido por uma grande muralha. As tropas inimigas estavam do lado de fora. O objetivo militar era disparar a bala de canhão de modo que ela atingisse as tropas inimigas. A gravura mostrava a trajetória "ideal" da bala: ela saía do canhão em uma linha reta, inclinada com relação ao chão, passava sobre a muralha e, quando estava bem acima das tropas, simplesmente caia verticalmente, como uma pedra jogada do alto de um prédio.

Sempre achei essa gravura incrível. Como seria possível alguém acreditar que a bala se move desse jeito? Qualquer criança sabe muito bem que, quando se atira uma pedra para a frente, sua trajetória descreve um arco, mais precisamente uma parábola, e não duas linhas retas formando um triângulo com o chão. Será que o ilustrador nunca havia atirado uma pedra, ou visto uma catapulta lançar bólidos contra tropas inimigas? (Aliás, os bólidos incluíam de pedras e bolas de piche em chamas a vacas, cabras e até cadáveres putrefatos.)

A resposta é que o ilustrador separava o que via de como explicava o que via. Na época, os movimentos eram explicados pela física aristotélica, que os dividia em dois tipos, naturais ou forçados. Segundo Aristóteles, o movimento natural dos objetos era retornar ao seu lugar de origem em linha reta. Portanto, o que era feito de terra deveria retornar à terra, o que era feito de água, à água, de ar, ao ar, e de fogo, ao fogo. O que cai cai em linha reta, o que sobe (ar e fogo) sobe em linha reta.

Para impor movimentos que não sejam verticais, deve-se forçar o objeto. Essa é a função do canhão. Quando a quantidade de movimento forçado acaba, a bala cai em linha reta, seguindo seu movimento natural. O soldado tinha então de saber como inclinar o canhão de modo que o movimento forçado terminasse bem acima das tropas. Outro detalhe importante: segundo Aristóteles, quando mais pesado um objeto, mais rápido ele cairia, pois maior seria a tendência de retornar ao seu lugar de origem.

O fato de uma bala de canhão não andar em linha reta não significa que a previsão do ilustrador estivesse errada. Se o soldado soubesse como inclinar o canhão ele acertaria o alvo. Muitas vezes, explicações que são eficientes podem estar conceitualmente erradas. Quando Galileu entra em cena, ele destrói as explicações aristotélicas com uma série de experimentos. No mais famoso, ele deixa duas balas de canhão caírem do alto da Torre de Pisa, uma bem mais pesada que a outra, e mostra que ambas atingem o chão praticamente ao mesmo tempo. A hipótese de Aristóteles estava errada: a gravidade acelera todos os corpos do mesmo jeito, sem discriminação.

Galileu usou seus experimentos para mostrar que o movimento dos projéteis, balas de canhão ou não, pode ser decomposto em duas partes: um movimento retilíneo com velocidade constante e um acelerado verticalmente para baixo, também em linha reta. Isso não deixa de ser meio parecido com a ilustração da Idade Média. A grande diferença é que Galileu mostrou que, quando os dois movimentos são combinados, o projétil descreve uma parábola.

Ele também entendeu algo muito profundo com relação ao movimento dos objetos: na ausência de distúrbios externos, um objeto movendo-se em linha reta com velocidade constante continuará nesse movimento indefinidamente. É a semente do conceito de inércia. Pense em um patinador no gelo. Se não houvesse atrito entre os patins e o gelo, o patinador continuaria seu movimento para sempre.

O que faltava a Galileu eram os conceitos de massa e força, que vieram com Isaac Newton: massa é uma medida da inércia de um corpo, sua tendência a manter o movimento na ausência de forças externas. Curioso que Newton nasceu em 1642, o ano que Galileu morreu, como se a lei da inércia pudesse também ser aplicada ao seu próprio desenvolvimento.

Um comentário:

  1. Muito bom esse artigo, gostei muito.. Eu tinha um trabalho sobre esse assunto mas não conseguia achar nada sobre a tal imagem que você sitou entao pesquisando encontrei esse blog, parabéns pelo seu trabalho, é realmente muito bom. Parabéns mais uma vez!

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