domingo, 6 de fevereiro de 2005

Céus alaranjados

MARCELO GLEISER
COLUNISTA DA FOLHA

Na "Micro/Macro" de 14 de novembro, escrevi sobre a incrível missão da sonda espacial Cassini, da Nasa, que deverá fazer 45 sobrevôos de Titã, a gigantesca lua de Saturno. Na coluna, anunciei que a sonda Huygens, da Agência Espacial Européia, estava sendo transportada pela Cassini e, se tudo corresse bem, iria ser lançada sobre a superfície de Titã em janeiro. Lançar não é bem correto: iria cair de pára-quedas, obtendo informação sobre sua composição atmosférica na descida e, se sobrevivesse ao pouso, de sua superfície.

Um objeto construído por mãos humanas, após viajar sete anos pela enorme vastidão do espaço, iria estabelecer contato com um mundo situado a mais de 1 bilhão de quilômetros de distância. Quem disse que a realidade não pode ser mágica? No dia 14 de janeiro, a Huygens penetrou os céus alaranjados de Titã (céus alaranjados!) e, após flutuar por 2,5 horas, atingiu a superfície, onde sobreviveu por outros 70 minutos.


Um objeto construído por mãos humanas iria estabelecer contato com um mundo a mais de 1 bilhão de km


As surpresas foram se amontoando à medida que os dados chegavam ao centro de controle na Terra. A maior delas foi a superfície estar abarrotada de pedras arredondadas, do tamanho de um punho fechado, parecidas com as que encontramos nos leitos dos rios. É provável que as pedras sejam compostas principalmente por gelo. Sua forma arredondada é produto de anos de erosão, devido a processos semelhantes aos que operam aqui: as pedras são empurradas por correntes líquidas, rolando e se chocando com outras, adquirindo progressivamente sua esfericidade. No ano passado, a sonda da Nasa Opportunity revelou a existência de pedras semelhantes em Marte. Ou seja, ambos os mundos tiveram correntes fluindo sobre suas superfícies no passado. Titã provavelmente as tem ainda hoje.

O local do pouso foi analisado. A sonda tem um pequeno dispositivo que mediu a força do impacto ao tocar o solo. Comparando com testes feitos em laboratórios com vários tipos de superfície, cientistas concluíram que a Huygens pousou em solo com consistência endurecida na superfície mas macia no interior. Alguém sugeriu areia molhada como comparação.

Talvez a sonda tenha pousado em uma praia, com um mar de metano e hidrocarbonetos à sua frente. A presença de materiais orgânicos torna Titã um local ideal para o estudo da origem da vida. Ou ao menos da complexificação necessária para que a vida surja. Lembro-me, quando era garoto, do meu irmão Luiz me levando para um passeio pela ilha de Itacuruçá, no litoral carioca. No meio da caminhada, em um ponto onde um riacho cheio de pitus desemboca no mar, Luiz pára e olha para uma poça enlameada, repleta de substâncias gelatinosas: "Isso aí, Marcelo, é a sopa da vida". Talvez Titã nos dê outras receitas.

A sonda enviou também imagens ao redor do seu local de pouso: terreno acidentado, com vales e colinas. Não avistou qualquer cratera, o que significa que Titã é uma lua dinâmica: processos erosivos ocorrem continuamente, apagando qualquer cicatriz que exista na superfície. Essa também é a razão pela qual existem tão poucas crateras na Terra. O diretor de ciências da Agência Espacial Européia, David Southwood, puxou a sardinha para o seu lado: "O pouso é um marco que muito dificilmente será repetido durante nossas vidas". Talvez na dele. Prefiro acreditar que será o primeiro de muitos.

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