domingo, 4 de dezembro de 2005

A ciência (ou não) dos milagres

MARCELO GLEISER
COLUNISTA DA FOLHA

Uma das contraposições mais fundamentais entre ciência e religião pode ser resumida, talvez grosseiramente, da seguinte forma: em ciência, deve-se ver para crer, ou seja, somente após prova concreta, confirmada por grupos diversos de cientistas, pode-se afirmar que um fenômeno é real. Já em religião, ao menos na sua versão mais comum, é o oposto: deve-se crer para ver, ou seja, a fé faz com que o improvável, talvez mesmo o obscuro, seja aceitável, talvez até real. Querer acreditar torna possíveis coisas implausíveis. A igreja tem ciência disso, e leva declarações de milagres muito a sério. As autoridades eclesiásticas sabem que a empolgação da fé, a emoção do momento, pode iludir as pessoas. Na Itália, onde milagres parecem ocorrer várias vezes ao ano, um grupo de cientistas resolveu investigá-los, tentando separar o que é embuste do que aparenta ser realmente misterioso, ao menos à luz da ciência atual.


As autoridades eclesiásticas sabem que a empolgação da fé, a emoção do momento, pode iludir as pessoas


A Igreja Católica também tem o seu comitê investigativo, a Congregação do Vaticano sobre as Causas dos Santos, dedicada aos candidatos à santidade. A situação é delicada. Por um lado, ela não pode ofender a crença de seus membros: alguns milagres persistem desde tempos medievais. Por outro, a igreja tem que se proteger contra impostores. Se todas as relíquias que se espalharam pela Europa durante a Idade Média fossem reais, por exemplo, ossos de santos e papas, restos do sangue de Cristo ou de sua cruz, esses santos e papas teriam esqueletos de gigantes, e Cristo, rios de sangue e uma cruz do tamanho de um arranha-céu. A Congregação muitas vezes utiliza a opinião de médicos e cientistas em seu processo de certificação de milagres, uma posição muito louvável. Conforme afirmou um de seus membros, Peter Gumpel, "não pedimos que médicos declarem um milagre, apenas se existe alguma explicação cientificamente plausível para, por exemplo, uma cura. Muitas vezes, o que pode parecer um milagre hoje, poderá não sê-lo em cem anos, dado o avanço da ciência".

Um exemplo interessante é o do sangue de são Januário, um bispo que foi decapitado em 305 por um imperador romano. O milagre de são Januário vem sendo celebrado em Nápoles desde o século 14. O arcebispo exibe um frasco supostamente com o sangue do santo. Se o sangue estiver liquefeito, a população pode estar certa de que o futuro será benigno, um alívio para quem vive sob o monte Vesúvio, o vulcão que destruiu Pompéia. Caso o sangue permaneça sólido, o futuro não é nada promissor. Multidões assistem ao ritual em um estado de absoluto desespero. A Congregação do Vaticano evita interferir nesse tipo de situação.

Mas não a Comissão Italiana de Investigação de Fenômenos Paranormais, que tem dois Prêmios Nobel entre seus membros. Novamente, a intenção não é atacar a fé, mas desmascarar aqueles que se aproveitam dela para benefício próprio. O químico Luigi Garlaschelli, da Universidade de Pavia, investigou o milagre de são Januário. Estudos da substância no frasco não conseguiram demonstrar conclusivamente que ele contém sangue, embora acusasse traços de hemoglobina. Garlaschelli pesquisou que materiais seriam disponíveis em Nápoles no século 14 e preparou uma mistura que pode duplicar o milagre. Seu preparado, consistindo de pedra calcária, ferro e certos pigmentos, é sólido quando não sacudido e líquido quando sacudido, mais ou menos como ketchup. Há coisas que a ciência não explica. Mas por que não usá-la para as que explica, reservando o mistério para aquilo que realmente é misterioso?

Um comentário:

  1. Olá Marcelo!!
    O problema do milagre de São Januário é que não foi comprovado se tratar de substancia química. Sabe-se que o frasco (ampola) é muito antiga. Será que está substância permaneceria ativa depois de tantos anos(séculos)? Seria outro milagre!

    Abraço!

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