domingo, 2 de novembro de 1997

A força da ciência está na sua universalidade

MARCELO GLEISER
especial para a Folha

Dada a complexidade do mundo em nossa volta, não é nada surpreendente que os cientistas usem simplificações aparentemente drásticas no estudo de fenômenos naturais. Por exemplo, se quisermos estudar a órbita da Lua em torno da Terra, é irrelevante incluirmos em nossa descrição que a Terra tem montanhas, oceanos e atmosfera, ou que a Lua tem crateras de todos os tamanhos. Basta sabermos a massa da Terra e a da Lua e a distância entre elas.

O balanço de uma folha ao vento, o vaivém de uma criança num balanço, um sino soando: todos esses "sistemas" podem ser modelados, com maior ou menor precisão, pelo movimento de um pêndulo sujeito a uma força externa. No caso da folha, a força externa vem do vento, no caso da criança, dos empurrões de seu pai e, no caso do sino, do padre puxando a corda.

Numa primeira aproximação, o modelo matemático que descreve o movimento desses sistemas é essencialmente o mesmo. Pela descrição matemática dos fenômenos, os físicos revelam a belíssima unidade que existe na natureza. Modelos imitam a natureza, recriando suas sutilezas de forma compreensível.

Descrever o comportamento de sistemas complexos por fórmulas simples é um ingrediente fundamental no trabalho científico e um de seus maiores desafios. Há um equilíbrio delicado entre simplificar demais _ignorando dados fundamentais sobre um sistema_ e incluir detalhes irrelevantes que compliquem desnecessariamente seu estudo.
Para testarmos a eficiência de um modelo, comparamos suas previsões com medidas obtidas por cuidadosas observações. No exemplo da folha balançando ao vento, podemos medir o tempo que a folha demora para voltar a um determinado ponto. Se o resultado medido não for semelhante à previsão do modelo, este tem de ser modificado.

Isso é verdade tanto para o balançar de uma folha quanto para qualquer modelo matemático de descrição de algum fenômeno, de escalas subatômicas até o Universo como um todo. E aqui a intuição do cientista é fundamental. Como encontrar as modificações corretas? Para mim, a construção de modelos é uma arte: a de modelar a natureza.
Pelo seu processo criativo, o cientista viabiliza sua visão do mundo. Para mim, assim como a obra de um artista, a obra de um cientista é um reflexo de sua personalidade. Claro, o veículo de expressão é completamente diferente, pois as linguagens são diferentes. Mas o momento que existe entre o surgimento de uma idéia e sua expressão, seja por uma equação ou por uma aquarela, é essencialmente idêntico.

Ao recriar o mundo matematicamente, o cientista reinventa a realidade a sua volta, representando-a por símbolos universais. Mesmo que o processo criativo científico seja tão subjetivo quanto o processo criativo artístico, o produto final do trabalho do cientista é acessível a qualquer outro que domine o vocabulário técnico da ciência. (E, espero, também ao público não especializado por um esforço dos cientistas de transmitir suas idéias de modo acessível.)

Em princípio, não deve haver subjetividade na interpretação de uma obra científica. Os modelos criados por cientistas são universais. Por meio da universalidade de sua linguagem, esses modelos são gradativamente corrigidos e aprimorados (o progresso científico raramente caminha em linha reta), chegando eventualmente a uma formulação aceita pela comunidade científica.

É nessa universalidade que reside a força da ciência. As equações que descrevem um fenômeno são idênticas para todos os cientistas, independentemente de qualquer diferença religiosa, racial ou política. A natureza não se presta a nossos tolos jogos de poder. A Ciência, em sua versão mais pura, é uma das formas mais humanas de conhecimento.

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