domingo, 11 de janeiro de 1998

O enigma da singularidade inicial

MARCELO GLEISER
especial para a Folha

Uma das questões mais fascinantes da cosmologia é também talvez a mais difícil de ser abordada: a questão da singularidade inicial, da origem de tudo, a origem do Universo, do tempo, do espaço e da matéria.

Em matemática, o termo "singularidade" representa um ponto que não pode ser descrito por uma função contínua. Imagine uma superfície qualquer, como a de um globo, em que qualquer ponto pode ser localizado em função de dois números (ou coordenadas), como a latitude e a longitude.

Agora imagine a mesma superfície com um pequeno furo em um local qualquer. Esse ponto é uma "singularidade" nessa superfície, não fazendo parte de descrição em termos de uma função contínua.

Segundo o modelo do Big Bang, o Universo surgiu de uma singularidade inicial, um "ponto" no qual todas as funções que descrevem seu comportamento exibem singularidades. Por exemplo, a densidade de matéria tende ao infinito, as distâncias entre dois (e todos) os pontos tende a zero e a temperatura tende ao infinito.

A singularidade inicial marca nossa ignorância completa do que aconteceu nesse instante, que os religiosos chamam de momento da Criação. Nossa descrição matemática dos processos físicos ocorridos nesse instante é inconsistente. Nossa compreensão do comportamento da matéria e da energia a tais temperaturas e pressões é incompleta e inconclusiva.

À primeira vista, a singularidade inicial parece ser algo que não pode ser compreendido racionalmente por meio de um discurso puramente científico. Mas vamos com calma. Durante o século 20, todo um novo universo físico nos foi revelado pelo estudo dos átomos e das partículas elementares.

Com o estudo cuidadoso dessas entidades submicroscópicas, ficou claro que a física das dimensões muito pequenas, a mecânica quântica, é completamente diferente da física que descreve o comportamento da matéria em dimensões acessíveis à percepção humana.

Imagine que a história do Universo esteja registrada em um filme que podemos passar do passado para o presente ou vice-versa. Se passarmos o filme do presente para o passado, veremos o Universo se encolher, com as distâncias entre as galáxias ficando cada vez menores.
Se continuarmos a passar o filme em direção ao passado, chegaremos a uma época em que a matéria estava completamente desintegrada e que a temperatura era enorme, muito maior que no interior do Sol. Continuando nossa projeção, chegaremos a uma época em que o próprio tamanho do Universo será comparável às distâncias subatômicas.

Se ignorássemos o que nos ensinou a mecânica quântica, chegaríamos eventualmente na singularidade inicial, na qual todas as distâncias entre todos os pontos chegariam a zero; o Universo deixaria de existir, com a singularidade engolindo o próprio espaço e o tempo.

Mas não podemos ignorar a mecânica quântica! A singularidade inicial é o que chamamos de um conceito clássico, uma consequência de aplicarmos uma teoria, no caso, a teoria da relatividade geral de Einstein, em um regime no qual ela não é aplicável. Portanto, a existência da singularidade inicial não deve ser interpretada como uma barreira absoluta do conhecimento, mas como um ponto em que a descrição do Universo como um todo deve ser feita através de um casamento entre a mecânica quântica e a relatividade geral.

Ainda não sabemos como construir uma teoria capaz de descrever os momentos iniciais do Universo, embora existam alguns candidatos. O enigma da singularidade inicial persiste, talvez menos misterioso do que no passado, mas igualmente inescrutável no presente.

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