domingo, 21 de junho de 1998

A ciência precisa de crise para poder avançar

MARCELO GLEISER
especial para a Folha

Nos últimos anos, tem sido comum ouvir ou ler notícias sobre os grandes problemas enfrentados pelo modelo do Big Bang. Como sabemos, segundo esse modelo cosmológico, nosso Universo surgiu há 15 bilhões de anos, a partir de uma concentração de matéria cuja densidade e temperatura eram absurdamente elevadas. O modelo em si não diz nada sobre a origem dessa concentração inicial de matéria, ou mesmo sobre sua composição. Essas são questões que permanecem em aberto até hoje, se bem que não faltem hipóteses, calorosamente debatidas por cosmólogos em todo o mundo.

O que o modelo afirma com segurança é que, após essa fase inicial ainda misteriosa, o Universo vem se expandindo de modo calculável por meio de equações bem conhecidas. Usando essas equações, sabemos qual é a densidade ou a temperatura da matéria em um dado momento na história do Universo. E, um bilionésimo de segundo após o "bang" inicial, podemos também calcular a composição material do Universo.

O fato de o modelo do Big Bang ter limites de validade surpreende muita gente, especialmente os que não estão habituados aos mecanismos do processo de evolução das idéias científicas. Em ciência, explicações são sempre provisórias, mesmo que muito eficientes por algum tempo. O modelo do Big Bang, como qualquer outro, não foge a essa regra.

Para um cientista, o fato de um modelo ser limitado em seu poder explicativo é natural. Mesmo que a imagem do cientista ou a do progresso científico seja a de uma constante certeza lógica, é comum estarmos incertos sobre qual caminho devemos seguir. A dúvida faz parte do processo de descoberta. Como dizia o grande físico teórico americano Richard Feynman, "a maioria das minhas idéias terminam suas curtas vidas na lata de lixo". Mas é claro que, dessas muitas idéias, as poucas que sobrevivem fazem avançar nossa compreensão do mundo natural de forma irreversível.

Quando lemos que o modelo do Big Bang, ou qualquer outro modelo, "está em crise", devemos entender que isso não é vergonhoso para os cientistas que trabalham nessa área. Essas crises motivam o progresso em ciência. Desses desafios surgem novas idéias, tornando o modelo em questão mais robusto e completo: a cada nova crise aparecem novas idéias e sugestões que são incorporadas ao modelo, em um processo de refinamento que, a princípio, não tem fim. Portanto, crises motivadas por novas observações ou descobertas constituem parte fundamental do progresso científico, que está longe de caminhar sempre em linha reta ou a passos firmes.

Como resumir, então, o mecanismo responsável pelo progresso em ciência? Existem três fatores que contribuem para o processo científico de descrição do mundo natural. Os dois primeiros são a indução e a dedução. Na dedução, encontramos o processo racional puro, com o qual deduzimos logicamente regras explicativas. Na dedução pura, tentamos compreender o mundo de dentro para fora, da mente para o mundo exterior. Já na indução, fazemos o contrário: obtemos medidas e dados que descrevem o mundo externo e procuramos criar regras que organizem esses dados de forma lógica, de fora para dentro.

Claro, se nos limitarmos a uma descrição puramente dedutiva do mundo, não iremos saber qual mundo estamos descrevendo. E, se nos limitarmos a uma descrição puramente indutiva do mundo, não saberemos quais os dados que são realmente importantes na construção de uma determinada teoria. É aqui que entra o terceiro fator fundamental na descrição científica do mundo natural, a imaginação, ou melhor, a intuição.

Por meio da intuição, essa misteriosa ponte entre o empírico e o racional, podemos refinar a troca entre dedução e indução, aprimorando constantemente nossos modelos e teorias. E, para uma intuição sadia, nada melhor que uma boa crise.

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