domingo, 23 de abril de 2000

As verdades e incertezas do processo científico

A ciência é muitas vezes percebida como infalível, as palavras do cientista sempre certas, sem dúvida ou erro nas descobertas. O único outro candidato mortal a essa infalibilidade é, se não me engano, o papa. Deixando questões teológicas de lado, hoje, domingo de Páscoa, um dia após o aniversário dos 500 anos de nossa descoberta -ao menos pelos europeus-, gostaria de abordar a questão da "verdade" em ciência.

Essa questão não é simples e, como toda a questão filosófica, não tem resposta única. Há versões do que seja verdade em áreas diferentes do conhecimento e, às vezes, essas versões entram em choque. Aqui segue a minha versão que, espero, incite a reflexão do leitor. O desenvolvimento da ciência moderna, isto é, dos últimos 400 anos aproximadamente, nos ensinou que a verdade em si não existe: o que há é um ideal de verdade, ou melhor, de perfeição racional. Essa é uma herança dos filósofos pitagóricos da Grécia Antiga, reexpressa por Platão em termos de duas realidades, a das idéias e a da percepção sensorial da realidade física. Para Platão, apenas no mundo das idéias podia-se contemplar o conceito de verdade; o mundo dos sentidos é necessariamente imperfeito, pois a representação concreta de uma idéia jamais será tão perfeita quanto a própria idéia. Um exemplo é a imagem que você faz de um círculo, e a sua representação no papel.

A ciência é uma representação da realidade física e, portanto, imperfeita. O processo científico, a geração de hipóteses que são testadas experimentalmente ou por meio de observações (como na astronomia), é uma busca contínua por uma verdade -uma perfeição- que jamais será alcançada. Uma exceção é a matemática pura, que lida com objetos que existem num mundo de idéias.

O leitor pode pensar que essa imperfeição é uma fraqueza da ciência. Pois é o oposto! O fato de que as representações da realidade, como leis e teorias, são imperfeitas define o processo científico. Eis uma ilustração esquemática de como a coisa funciona. Um cientista observa um novo fenômeno; essa descoberta comprova certas hipóteses feitas por outros cientistas (em geral, os "teóricos"), que precisavam de uma comprovação para ser aceitas. Ou elas são uma completa surpresa. A comunidade científica responde imediatamente: outros grupos tentam replicar a descoberta em seus laboratórios, verificando se os resultados estão corretos ou precisos. Caso a descoberta seja confirmada, ótimo, as hipóteses adiantadas estão comprovadas e aprendemos algo de novo sobre a natureza. Caso contrário, os resultados e as hipóteses devem ser abandonados ou, no mínimo, modificados. Se a descoberta tiver sido uma surpresa, hipóteses e modelos são adiantados para tentar explicá-la por meio de leis simples.

O processo não para aí. Uma vez que ficou claro que o fenômeno realmente existe e as hipóteses funcionam, tenta-se explorar os limites dessas hipóteses. Eventualmente, descobre-se que os modelos nelas baseados deixam de funcionar e novas hipóteses são necessárias.

Recentemente, um grupo na Itália declarou ter observado um novo tipo de partícula elementar da matéria, cuja existência havia sido predita por certas teorias chamadas supersimétricas. Elas são completamente diferentes da matéria que conhecemos, isto é, aquela feita de prótons, nêutrons e elétrons. Possivelmente, elas podem constituir a chamada "matéria escura", que cosmólogos acreditam que possa constituir 90% da matéria no Universo. Imediatamente, outro grupo de físicos na Califórnia, que também procura por essas partículas, criticou os resultados dos italianos: os detectores do grupo californiano (e russo) não assinalaram a existência das partículas. Possivelmente, dizem eles, os sinais vistos pelos italianos são uma contaminação vinda de outras fontes, como a radiatividade natural. Essa polêmica, ainda em aberto, ilustra nossa discussão. Buscamos a "verdade", mas sabendo que ela será sempre temporária: mesmo que as partículas existam, comprovando as teorias atuais, aparecerão outras que forçarão sua revisão, e assim por diante.

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