domingo, 8 de junho de 2003

Antes do começo

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Antes do começo, o que existia? O nada? Como pensar sobre o nada sem supor a existência de algo? O nada faz sentido por si só? Ou ele precisa de seu oposto -o tudo- para ter significado? Não seria, talvez, melhor pensar em espaço e ausência de espaço, o vazio? Mas, se no início existia apenas o vazio, de onde então surgiram o cosmo, a matéria, o espaço no qual ela se move e cria formas complexas, algumas até vivas? Como algo material pode surgir do nada, que por definição é imaterial?

Perguntas como essas vêm assombrando e inspirando a humanidade desde os seus primórdios. A resposta mais popular lança mão da fé: no Ocidente, foi um Criador que fez tudo a partir do nada. Mas essa é apenas uma versão. Existem muitas, espalhadas pelo mundo e pelo tempo. Para o povo maori, da Nova Zelândia, o mundo surgiu do nada, sem a ação de nenhum ser sobrenatural, sem que antes existisse qualquer coisa: o cosmo simplesmente surgiu, de repente, produto de uma ânsia abstrata de algo concreto existir.

Tenho certeza de que vários leitores já se perguntaram sobre isso, talvez tenham passado noites ao pé de uma fogueira com os amigos, olhando para o céu repleto de estrelas, tentando entender o porquê disso tudo, do mundo à nossa volta. Por que o mundo? Por que nós? O nada não é muito mais simples?

Surge a ciência, e a secularização da sociedade moderna força uma retomada dessas antigas questões. Mas agora, sob as suas lentes racionais, precisas, quantitativas e verificáveis. O que a ciência tem a dizer sobre essas questões, sobre a criação de todas as coisas? O que ela tem a dizer sobre o porquê de as coisas existirem?

Nada. A ciência não explica o porquê das coisas. Ela explica o como. Na verdade, esse tipo de pergunta, o porquê, não é província do discurso científico. Partículas com cargas elétricas são atraídas umas às outras. Daí entendemos os átomos, a estrutura das moléculas, as reações químicas em que elétrons são trocados entre elementos ou atraídos e repelidos por eles. Por que cargas elétricas opostas se atraem? Não sabemos. Mas entendemos como elas se atraem e, a partir disso, criamos toda uma sociedade movida a eletricidade, tecnologias digitais que dependem de nossa compreensão dos átomos, lasers etc.

Por que objetos são atraídos uns aos outros pela força que chamamos de gravidade? Também não sabemos. Mas sabemos descrever como eles se atraem e, a partir disso, podemos descrever como os planetas giram em torno do Sol, como as estrelas nascem e morrem, como as galáxias são formadas, como o Universo se expande há já 14 bilhões de anos, e cada vez mais rapidamente.

Falando em expansão, voltemos à pergunta inicial. Afinal, se o Universo está em expansão, ele foi menor antes. Melhor dizendo, as distâncias entre os vários objetos que o compõem eram tanto menores quanto mais perto do momento inicial, do tempo zero. Nesse caso, no tempo zero, tudo deveria estar amontoado em um único ponto. É isso? Tudo cabe num ponto? E antes desse tempo zero? O que existia antes do começo?

Essas perguntas são província da ciência. Que alívio. A resposta é, talvez, desencorajadora: não é possível falarmos sobre antes do começo, pois antes do começo o tempo simplesmente não existia. Seria como tentar descobrir o que existe ao norte do pólo Norte. Ou quem era você antes de seus pais o conceberem.

Mais sofisticadamente, o conceito de tempo tal como o entendemos em nosso dia-a-dia, o tique-taque constante e regular do passar das horas, não faz sentido perto da origem do Universo. A física que usa esse tempo uniforme e familiar não funciona nas condições extremas que reinavam nos primórdios cósmicos. A realidade não é descrita por um espaço inerte e por um tempo regular, fluindo como um rio. Tanto espaço quanto tempo flutuavam caoticamente: o espaço deformado em todas as direções e, em cada ponto, um tempo diverso. Não existia um "antes" antes do próprio tempo -como o entendemos- existir.

Tinha razão santo Agostinho, quando disse que o tempo veio com a Criação. Mas e a Criação, de onde veio? De uma flutuação quântica no Universo primordial, diz a cosmologia moderna. Do desejo inerente de algo existir, dizem os maoris. Sob a ótica da história, a pergunta é mais importante do que a resposta.

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