domingo, 15 de junho de 2003

Galáxias em uma xícara de café

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Certa vez, uma amiga compositora mencionou que, para ela, poucos objetos naturais eram tão belos quanto uma galáxia espiral. (Na época, eu achava os seus olhos, enormes, azuis, bem mais belos. Mas essa é uma outra história.) Como estávamos em um restaurante jantando, resolvi impressioná-la, mostrando como fazer uma galáxia em uma xícara de café: "Basta você pôr um pouco de creme bem devagar sobre o café e misturar delicadamente os dois fluidos por alguns segundos. Em pouco tempo, você verá uma galáxia espiral surgir na sua xícara". O resultado, mesmo que imperfeito, foi convincente.

O interessante é que a brincadeira com a xícara e os dois fluidos não está tão distante assim da realidade. Os modelos que descrevem a formação de galáxias espirais também são baseados na interação entre dois fluidos: um a matéria comum das estrelas e das nuvens de gás interestelar (principalmente hidrogênio e hélio) e outro um fluido mais exótico, a chamada matéria escura, cuja composição permanece ainda desconhecida.

O café, de menor viscosidade, faz o papel da matéria escura, e o creme, mais viscoso, o da matéria estelar. Note que até as cores são sugestivas do papel de cada um. A fricção entre o café e o creme e a interna a cada fluido fazem o papel da atração gravitacional entre os dois tipos de matéria e, também, entre si.

O movimento de rotação induzido pela colher na mistura do café com o creme faz o papel do movimento de rotação que ocorre durante o processo de formação da galáxia: no início, é conveniente imaginar os dois tipos de matéria como sendo duas esferas difusas de gás, misturadas e girando lentamente.

O movimento de rotação é contrabalançado pela atração gravitacional entre os dois fluidos. Depois de algum tempo, algumas regiões tornam-se mais densas do que outras, exercendo então maior atração gravitacional sobre a matéria à sua volta. Essa instabilidade causa a contração das duas esferas de gás que, girando, vão dando forma à galáxia nascente. A matéria escura, que, por definição, interage apenas gravitacionalmente com outros tipos de matéria e com si própria, mantém-se mais difusa do que a matéria visível, que assume a forma espiralada.

A menos que o leitor seja como a minha avó, que tomava leite com uma gota microscópica de café, o café com creme a que me refiro tem muito mais café do que creme (o popular "pingado"). Os dois tipos de matéria que compõem a galáxia também aparecem em proporções desiguais. A matéria comum, a que vemos em estrelas e nuvens de gás, representa menos de 10% da matéria total da galáxia, dominada pela matéria escura. A matéria comum, feita de átomos com prótons, nêutrons e elétrons, tal como a que nos compõe, é minoria absoluta: na galáxia, domina o invisível aos olhos.

Imagino que o leitor esteja se perguntando: "Mas, se essa matéria escura é invisível, como sabemos que ela existe? Afinal, o café é preto, mas visível". A detecção da matéria escura, ao menos até o momento, é feita indiretamente, através de sua ação gravitacional sobre a matéria visível da galáxia. Em particular, uma das pistas vem da curva de rotação da galáxia, a medida do quão rápido suas diferentes partes giram em torno de seu centro, como um redemoinho cósmico.

Se a galáxia fosse composta apenas de matéria visível, sua velocidade de rotação (ou melhor, a das estrelas em seus braços espirais) deveria diminuir após certa distância do centro.
Entretanto, o que se observa é que a velocidade permanece constante até as regiões mais externas da parte visível da galáxia. Isso se deve à presença da matéria escura, que se estende bem além da matéria visível, formando um halo invisível em torno da galáxia, como um véu.
Vários experimentos aqui na Terra estão tentando detectar as partículas de matéria escura diretamente. Na medida em que circulamos pelo espaço, elas vão passando através da superfície, quase como fantasmas. Volta e meia, uma pode se chocar com um detector, acusando a sua presença. Mas, pelo jeito, teremos tempo para muitos cafés com creme antes que ocorra alguma detecção.

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