domingo, 14 de março de 2004

Um Universo banhado em energia escura


Marcelo Gleiser
especial para a Folha

Sei que dizer que energia é clara ou escura, ou que tem tonalidade, não faz muito sentido. Energia, em geral, está associada a objetos em movimento, como carros ou bolas de futebol, ou à capacidade que certos sistemas têm de causar movimento, como uma mola contraída (se soltar, ela se distende) ou uma bola solta de uma certa altura (que irá cair).

Esses dois tipos de energia, cinética (de movimento) ou potencial, são apenas parte da história. Segundo a teoria da relatividade, matéria é apenas uma forma de energia, e é possível, sob certas condições, converter uma na outra. Essa propriedade tem importantes conseqüências para a história do Universo, desde sua origem até seu futuro.
Quando Einstein propôs a sua teoria da relatividade geral em 1916, sabia que ela teria conseqüências para a nossa compreensão do Universo. Segundo a teoria, a matéria pode alterar a geometria do espaço: quanto mais massa (ou melhor, densidade) tem um objeto, mais curvo é o espaço à sua volta. Portanto, se soubéssemos a quantidade total de matéria no Universo, poderíamos determinar sua geometria.

Aqui entra a relação entre matéria e energia: se matéria exerce uma atração gravitacional sobre matéria, a energia também o faz. Ou seja, formas de energia podem encurvar o espaço. Se o Universo está repleto de tipos diferentes de matéria e energia, todos contribuem para a sua estrutura. E, se o Universo está em um cabo-de-guerra entre expansão e contração, a quantidade de matéria e os vários tipos de energia irão determinar, no final, o seu destino: expansão eterna ou contração apocalíptica.

Observações feitas em 1998 pegaram os astrofísicos de surpresa: elas sugeriam que o Universo, hoje, está em expansão mais acelerada do que no passado. Como mostrar algo tão estranho?
Astrônomos estão sempre em busca de objetos extremamente brilhantes. Quanto mais brilhante o objeto, mais fácil enxergá-lo. Especialmente se ele está a milhões ou bilhões de anos-luz daqui. Um de seus favoritos são as supernovas do tipo Ia, estrelas que detonam em explosões de potência inimaginável na Terra.

Segundo as teorias mais aceitas, essas estrelas têm, todas, propriedades muito semelhantes. Portanto, se uma próxima é observada, pode-se inferir a distância de outras medindo apenas a diferença em seu brilho. Essas estrelas funcionam literalmente como marcos de distância pelo Universo afora.

O que se descobriu em 1998 foi que as supernovas mais próximas têm maiores velocidades de recessão do que as mais distantes. Ou seja, elas estão se afastando da Terra mais rapidamente.
Uma imagem útil é a de vários trens saindo da estação em momentos diferentes. Em princípio, deveriam ter todos a mesma velocidade. Mas os que saíram mais recentemente, por algum motivo, estão viajando mais rápido do que os já mais distantes. A questão é: por quê?
Gravidade é uma força atrativa. Se o Universo está em expansão acelerada, é porque algo está causando uma espécie de "antigravidade", uma repulsão cósmica. Einstein mesmo havia proposto um termo em suas equações, que ele chamou de "pressão negativa", capaz de causar uma expansão acelerada. Mais tarde, o termo ficou conhecido como constante cosmológica, uma possibilidade matemática sem explicação física.

Outra proposta recente é que a aceleração seja causada por um campo hipotético, chamado de quintessência -feito o éter dos gregos. A diferença entre os dois vem do fato de que uma constante, como já diz o nome, não muda, sendo a mesma em todo o cosmos. Já um campo pode variar localmente -feito a temperatura em um quarto, maior perto de uma lâmpada do que embaixo da cama. Ambos carregam consigo energia que, como não pode ser vista, foi chamada de energia escura. Portanto, constante cosmológica ou quintessência, o Universo está banhado em energia escura.

Até agora, 16 supernovas foram observadas, favorecendo a constante cosmológica. Falta saber o que é essa constante. Ciência saudável é assim: especulações teóricas, por mais belas que sejam, sempre cedem às observações. Afinal, o objetivo é descrever a natureza da melhor forma possível, e não satisfazer às nossas fantasias.

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